Quatro

98 18 1
                                    


Na manhã seguinte, o mundo parecia um lugar completamente diferente. A chuva de noite passada simplesmente desaparecera, dando lugar a um dia radiante e absurdamente abafado. Os passarinhos do lado de fora entoavam melodias de esperança, o ar cheirava a suor, poeira e um toque de pão fresco e lavanda.

Além disso, é claro, a minha vida estava completamente virada do avesso.

Quando abri os olhos, logo que acordei, precisei pensar um pouco para perceber que eu não estava em casa, que eu sequer estava em Americana. Então, todo o dia anterior voltou para mim em um átimo, preenchendo minha mente com as memórias: o rompimento com Elisa, o beijo com Alan, a fuga, a estrada, a briga com minha mãe, a Pousada da Turma, e Luba, e Teddy...

E Cellbit. O garoto de olhos azuis que eu encontrara emocionalmente fragilizado e paranoico na noite anterior. Meu novo - e inesperado - companheiro de viagem.

Suspirei longamente, e esfreguei os olhos. Me levantei, sentindo-me muito desconfortável graças à cama dura em que dormira, além das roupas pouco práticas. Em seguida, calcei meus tênis e procurei minha escova de dente entre minhas coisas, para então ir ao banheiro e, além de escovar os dentes, tentar dar um jeito na minha cara inchada e cabelo.

— Eu realmente devia ter feito um corte antes... — murmurei para mim mesmo, enquanto "penteava" meus cachos com os dedos. Quando me considerei meio que aceitável, saí do banheiro.

No meio-tempo em que eu ficara lá dentro, Cellbit tinha acordado e, no momento, tentava arrumar a cama. Larguei minhas coisas e prontamente fui ajudá-lo na tarefa. Ele resmungava baixinho sobre uma dor nas costas e uma noite maldormida, e eu não pude evitar um leve riso como reação ao seu mal humor.

Ele me encarou de forma mortífera como resposta, e eu repliquei fazendo minha cara de paisagem, que muitos diziam ser cômica. Por fim, ele desviou os olhos, comprimindo os lábios pra não deixar escapar um risinho, meio que se dando por vencido.

— Você é um besta — Cellbit resmungou, enquanto se espreguiçava. — Caralho, essa cama é dura! Ainda bem que não vamos mais precisar dormir nela — complementou, sentando-se na supracitada cama.

— Ah, claro, porque dormir no banco de um carro velho é infinitamente mais confortável. — comentei, com ironia, enquanto catava minhas bagunças pelo quarto e jogava tudo dentro da mala. Meu companheiro de viagem soltou um gemido frustrado — E provavelmente nossa viagem vai ser recheada de pousadas-de-beira-de-estrada com camas desconfortáveis. E a gente vai ter que aguentar — complementei.

— Sabe, às vezes eu queria que não precisássemos dormir... — comentou, enquanto procurava alguma coisa dentro de sua mochila — Teríamos mais tempo pra viver de verdade, pra sair com nossos amigos... — começou a devanear — E o mais importante: não precisaríamos nos deitar em camas duras. Seria o paraíso! — completou, e finalmente tirou de dentro de sua mochila uma folha de papel envolta por um plástico impermeável. A folha tinha um aspecto amassado.

— Sabe, é bem engraçado você não gostar de dormir, principalmente se a gente considerar que noite passada você se recusou a comparar nossas listas, e por que mesmo...? Hum, é mesmo, porque queria dormir! — apontei, fingindo ofensa.

— Olha, eu tava realmente quase desabando de cansaço, e você também. — argumentou — Mas agora, apressadão, a gente pode comparar a porcaria dessas listas. — disse, quase esfregando o papel na minha cara.

Nesse momento, meu estômago – uma grande oportunista, esse danadinho – roncou de forma tão conveniente que me fez restaurar minha fé no acaso.

— Realmente, a gente pode fazer isso... — falei, gentil e lentamente, sorrindo abertamente e olhando profundamente nos olhos azuis de Cellbit — Depois de tomarmos café da manhã — concluí, afastando-me dele.

highway to nowhere || cellps ||Onde histórias criam vida. Descubra agora