Pequenos Prazeres

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Henrique desce cambaleante do ônibus, seus ombros estão pesados, e seus pés cansados de carregar o peso de seu corpo. De forma quase arrastada ele caminha alguns quarteirões até o prédio onde mora. Com dificuldade apanha a chave enquanto remaneja as alças das pesadas sacolas de compras, que trás entrelaçadas nos dedos das mãos.

Ele sobe as escadas como um condenado carregando sua cruz rumo ao calvário, desvia-se com dificuldade de dois pirralhos que descem as escadas correndo, obrigando Henrique a comprimir-se contra a parede para não faze-los descer a escada rolando. Depois de um ou dois minutos de "via-crucis" ele chega diante da porta de seu lar, já fatigado ele se vê obrigado a um novo malabarismo com as sacolas para usar as chaves.

Logo que entra ele é recebido aos miados por sua gata, que mia desesperadamente, alguns poderiam pensar que é por saudade, afeto ou mesmo consideração, mas o felino não se dá a tais falsidades tão próprias dos humanos. Tudo é por que na verdade a ração acabou e a água da vasilha já não está fresca, isso fica evidente pois logo que estas questões são resolvidas o felino desvencilha-se sem culpa do humano.

  Já debaixo do chuveiro, que não aquece tanto quanto deveria, Henrique se dá o direito a seus momentos de reflexão existencial. A água morna caindo em seu pescoço, que proporciona tão agradável relaxamento muscular, momento propicio para pensar sobre quem é e qual é seu lugar no mundo. Sobretudo para encontrar respostas que se perderão de sua mente assim que ele sair do banheiro, como se o vapor da água do chuveiro fosse na verdade a bruma que divisa o nosso mundo do mundo das ideias.  

Já desprovido da incomoda  indumentária cotidiana ele caminha em direção a sala, ainda com o cabelo molhado e saboreando a sensação do frescor do banho recém tomado, aquele refrigério da diferença térmica entre o corpo úmido e o ambiente que parece trazer uma nova carga de energia ao mesmo tempo em que aparenta te dar asas para voar docemente para os domínios de Morpheu.

Chegando a sala, ele depara-e com a satisfeita gata, já em doce sono, sobre as almofadas. Conformado com a sinceridade felina, Henrique recostando-se em sua poltrona, objeto estimado já desgastado pelo tempo e pelo uso, entretanto seu revestimento surrado e aspecto distante do glamour de anos anteriores não diminuem a alegria deste reencontro. Seu corpo relaxa,  de sua boca sai um profundo suspiro de alívio, parecia sentir sobre seus ombros o peso de um mundo até aquele momento.

Concedendo-se alguns segundos e prazeroso ócio, tendo a sensação da sola dos pés a tocar o chão frio, ele fecha os olhos, procurando não pensar em nada para não dispersar-se deste pequeno prazer, seus dedos dos pés parecerem não latejar como latejaram o dia todo, enfurnados e oprimidos num ambiente sufocante dentro dos sapatos.  

Esses pequenos prazeres parecem compensar-lhe tudo, a sensação do chão gelado debaixo de seus pés descalços, a água a descer-lhe a garganta quando esta esta seca, a água morna do chuveiro, tudo parece fazer-lhe reviver. Renascer depois de passar mais um dia morrendo num mundo onde o ciclo de desgaste não tem fim, onde ele tem consciência de que tal qual seu celular ele esta apenas recarregando para ser usado novamente no dia seguinte.

CrônicasWhere stories live. Discover now