2 - Sr. A

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  Que fique bem claro para o caso de alguém pegar esse caderno: Sr. A não tem um nome que comece com A. O que acontece é que suas notas não eram nada agradáveis a.L. (antes de Lucrécia), e ele só passou a ter notas “classe A” d.L. (depois de Lucrécia), então achei que fosse um apelido condizente com a situação. E também porque o sobrenome dele começa com A.
  Eu já sabia da conduta dele quando a gente começou a se falar, e eu não dava a mínima. Eu realmente achava que eu não iria me envolver com um cara como ele, mas acho que quanto mais ele falava comigo mais parecia interessante saber sobre ele. Estava presa a ele como a um livro de suspense cujos comentários e resenhas sobre ele são desprezíveis, e eu não conseguia mais conter a minha ânsia de conhecê-lo.

Nota: Todo desastre começa com um “Oi” inocente.

  Sr. A é o tipo de cara que uma nerd espinhenta só idealiza e sonha, porque nunca vai ser pro nosso bico. Skatista, 1,76m de estrada de perdição, não chegava a ser sarado, mas o tanque daria pra esfregar umas roupas tranquilo, olhos cor de mel, e aquela boca super beijável. Nem tão popular, mas cumprimenta todo o pessoal tranquilamente. Altamente sociável e divertido. Enfim, o oposto da Miss Invisibilidade que aqui vos fala. É, agora nem tanto. Depois de alguns dias só andando junto eu já estava na pauta das fofocas ácidas pela escola, e agora todo o pessoal me conhece como “A nerd milagre”. Milagre por 3 coisinhas:
1ª - Ele nunca namorou uma nerd antes de mim;
2ª - Quase ninguém sabia da minha existência na escola antes disso (chegaram até a perguntar se eu era nova na escola);
3ª - Durou um ano (o relacionamento mais longo que ele já teve na vida).
  Sr. A tinha uma lista extensa de namoros que não deram certo, e todos duravam de 3 semanas a no máximo 6 meses (esse foi o recorde de Kelly Lewis, mas não vem ao caso falar dela). Mas óbvio, ele não namorava garotas mal arrumadas por fora, o problema era dentro. Eram garotas fúteis e arrogantes, até meio burras, mas sempre bem arrumadas. O fato de ele namorar comigo foi impactante para todo o colégio, porque eu não me encaixava em tais requisitos. Eu só pensava que poderia ser uma aposta medíocre. Os outros chegaram a cogitar bruxaria, lavagem cerebral, hipnose e abdução da minha parte. “Ah, ok, eu sou um extraterrestre agora”, eu pensava.
  Claro, eu sempre fui subestimada no fator beldade, porque eu realmente não achava necessário ser bonita se a pessoa gostasse mais da minha cara do que da minha personalidade. Eu vivia com a minha juba em paz e com as roupas que eu achava confortável, não ligava pro meu tamanho, embora nunca estivesse gorda, minhas espinhas não me incomodavam, e eu não fazia questão de usar maquiagem. Não era daquelas de ficar horas no espelho tentando descobrir  se  o  batom  Cereja  Real  fica  bom  com  um  look  de  inverno,  por exemplo.
  Antes dele eu me olhava no espelho e via que eu era só um bom coração por trás de cachos rebeldes e espinhas. Agora eu me olho e não consigo pensar em outra coisa a não ser o Coringa do filme do Batman. A base escorreu junto com o maldito lápis de olho que prometia ser à prova d’água, e ficou uma caca. Talvez eu esteja chorando ácido porque se essas olheiras aumentarem eu já posso fazer a noiva cadáver tranquilo. Nessas horas eu me pego concordando com a Heloísa mentalmente. “Seu exterior está mostrando muito do seu interior”, ela disse. É, não dá pra discordar, pareço acabada mesmo, uma perfeita vítima de atropelamento. Em outras palavras, estou transparente, e isso não pode continuar assim.

***

  Sr. A começou a falar comigo porque precisava de alguém pra estudar junto com ele pra Física, e o melhor argumento que ele tinha pra ME escolher foi:
‒ Tem alguém melhor que você?
‒ Isaac Newton, por exemplo. Einstein...
‒ Ok, mas eu não ressuscito pessoas, Luka.
Eu soube nesse exato momento que era roubada. Como é que um cara que nunca nem me deu um oi fala comigo pela primeira vez e me chama pelo meu apelido carinhoso?
‒ Construa uma máquina do tempo, então. Assim você ainda terá a chance de voltar no tempo e não me chamar pelo meu apelido, que você nem deveria saber, aliás.
Ele levantou as mãos, como que se rendendo:
‒ Culpado! – e sorriu. Ah, diabinho sedutor...
‒ Eu já estudo com a Helô e a Megan, acho que não vai...
‒ Eu já falei com elas, e elas concordaram em me aceitar no grupo de estudos de vocês.
“Meninas, vocês me pagam!” eu penso. Fico procurando outra desculpa para não aceitá-lo, mas ele implora:
‒ Eu preciso muito mesmo Lucrécia, quer que eu ajoelhe? “Ah, essa cena seria ótima de ver. Porém, constrangedora. ”
  ‒ Não é necessário. Você está livre às 3 da tarde?
‒ 3? Errr, tá.
‒ É toda segunda, quarta e sexta nesse horário. Precisa do endereço?
‒ Não, eu sei onde é a casa da Helô.
‒ A gente estuda na minha casa, ô Sherlock.
  ‒ A Helô disse que era na casa dela. – ele coça a nuca. Minha cara é de enfado, mas a minha mente já começa a projetar milhões de formas de tortura para Heloísa Baker.
‒ A minha casa é o centro de estudos, eu tenho uma minibiblioteca no escritório que eu montei num quartinho de brincar, é muito mais fácil estudar lá do que eu carregar os livros pra casa da Helô. Mas é claro que você entende isso, né?
Ele faz uma careta. Eu estou a ponto de pular no pescoço de todos, e antes que isso aconteça entrego o número da minha casa pra ele.
‒ O que você quer dizer com 57? É uma senha? – ele pergunta, a dúvida estampada na cara dele.
‒ Não, é só o número da minha casa.
‒ Mas como é que eu vou saber onde fica?
‒ Fácil. Preste mais atenção na rua onde você mora.

***

  O dia de estudos foi um lixo.
Sr. A levou a atual namorada dele da época, que no caso era Danielle Smithers, uma líder de torcida de parar o trânsito. Literalmente. Ela já fez serviços sociais como guarda de faixa na região escolar, pra fiscalizar as criancinhas atravessando a rua. Bom, se tivéssemos campeonato de líder de torcida por aqui, ela já teria medalhas suficientes pra pagar uma faculdade, embora ela nunca conseguisse ser a capitã das líderes de torcida.
Como uma boa nerd, eu passava o conteúdo pra todos, e sentia na pele pela primeira vez a difícil tarefa de um professor. Megan não parava de falar com Danielle sobre o cabelo dela e como ela conseguia aquele “ondulado de modelo tão natural”, Helô não parava de babar olhando pro meu Amigo, e por incrível que pareça ele era o único que não desgrudava os olhos de mim. Eu explicava de uma forma bem simples e ele parecia concordar com cada palavra que eu dizia e anotar tudo. Muitas vezes eu até pensava que ele estava me analisando ao invés de prestar atenção na matéria, mas afastava essa ideia da minha mente o mais rápido que podia. Não há análise pessoal em uma camiseta escrito “TUDO BACON¹ VOCÊ?” e uma calça de moletom cinza, apesar de que o meu cabelo estava realmente afrontando a física.
Foram uma semana e meia nesse ritmo até que Sr. A e Danielle Smithers brigassem feio e terminassem. Algo sobre ele esquecer de avisar que ia sair com os amigos no dia de “comemoração de namoro mensal”, aquela frescura de todo mês no dia que começaram a namorar eles iriam aos lugares favoritos um do outro  e ficariam de chameguinho o dia  todo. Depois que eles terminaram, Helô estudava de perto a anatomia do Sr. A e Megan prestava atenção razoavelmente, até que coloquei um basta.
‒ Helô, sobre o que estamos estudando mesmo?
Como se saíssem de um transe, os dois se viram pra mim e dizem:
‒ O quê??
‒ É uma reunião de estudos ou um encontro num barzinho?
‒ Você está parecendo a minha mãe, sabia? – Helô faz um muxoxo e cruza os braços.
‒ É, e você vai me agradecer por isso mocinha. Quanto a você, Mister Bom de Papo, se continuar assim seus dias estão contados neste grupo de estudos. Devo te lembrar que é você quem precisa de notas?
Não, capitã Lucrécia! – diz meu Amigo, com uma voz engraçada. Helô e Megan começam a gargalhar e eu explodo:
‒ Saiam da minha casa, AGORA!!!
‒ Calma Luka – diz Megan, tentando me acalmar. – Foi só uma brincadeira.
‒ Até amanhã. – recolho as minhas coisas e subo para o meu quarto. No meio do caminho, ouço eles sendo acompanhados pelo meu pai até a porta, e Helô sussurra algo como:
‒ Não tenho culpa da TPM dela atacar de repente...

***

  Mais tarde aquele dia ele me ligou.
‒ Ei, oi.
‒ O que você quer? – ah, eu sou tão delicada!
‒ Calma, eu só quero conversar, tudo bem?
‒ Eu estou ouvindo.
‒ Me desculpa pela brincadeira, sério. Quer tomar um milk‒shake? Eu pago.
‒ Eu não saio à noite.
‒ Ainda são sete e quinze, não é considerado noite.
‒ Diz isso pro meu pai.
‒ Bom, acho que eles não vão negar que você saia no quintal.
‒ Mas hein?
‒ Dá uma olhada na janela, ô Julieta. – e ele ri.
Olho pela janela e lá está ele, com o celular na orelha equilibrando dois milk-shakes e rindo.
‒ Você é um maníaco ou o quê? – começo a rir. – Estou descendo.
Pare um minuto. Você mesmo que está aí, lendo essas confissões idiotas que eu escrevi, se é que alguém está lendo isso além de mim. Grite pra mim.
Fale “Não Lucrécia, não desça essas escadas, não tome esse milk-shake com esse cara”, fale, agora! “Talvez se alguém gritasse pra mim nesse dia eu não tivesse descido”, eu penso. “Talvez eu não estivesse assim tão sem rumo, tão magoada”. Se você quer saber mesmo, talvez a minha consciência tivesse me alertado naquela hora sobre a coleção de corações que ele estava fazendo, e me dizendo pra não me apaixonar.
O meu desastre começou nesse dia, com um milk-shake.
E eu ainda penso que esse milk-shake não era tão inocente assim.

¹ Uma imagem de bacon, entendeu? Tipo: Tudo “bem com” você?

O Colecionador de CoraçõesOnde histórias criam vida. Descubra agora