3 - O desastre milk-shake

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‒ Onde é que você pensa que vai, mocinha? – meu pai levanta os olhos por cima dos óculos da poltrona da sala.
‒ Vou conversar com um dos meus “alunos”, – faço aspas com meus dedos – e tomar um milk-shake, nada demais. Posso?
‒ Pode, mas sem demora, hein!
‒ Ok, pai. – e saio.
Desço os dois degraus e ele está lá, sentado no próprio skate, segurando meu milk-shake e me olhando como se eu fosse uma top model deslumbrante na passarela da entrada de casa.
‒ Você vai ficar aí fora mesmo ou quer que eu abra o portão? – pergunto, levantando a sobrancelha esquerda e dando meu sorriso torto.
‒ Ah, tanto faz, cê que sabe, Luka. – ele me lança aquele sorriso lindo de tirar o ar de qualquer garota sem sorte. – Se demorar muito seu milk-shake vai ser meu, só isso.
Abro o portão e me sento na beira da calçada. Estou só de meias, e sei que vou levar uma bronca, mas não dou a mínima, embora seja ridículo eu sair de casa só de meias. “Fala sério,” penso comigo mesma, “ um cara lindo e imprestável me leva um milk-shake e eu saio só de meias pra rua, francamente!”. Bom, pelo menos minha calça de moletom e meu camisetão com um marshmallow fofinho não estão uma aberração total. Pego o milk-shake e cruzo as pernas, olhando pra ele, e pouco antes de eu dar um gole, ele me diz:
‒ Espero que goste, é de baunilha com Ovomaltine. – e dá um risinho tímido. Eu arregalo os olhos, e na minha cabeça eu só tento imaginar onde diabos ele descobriu meu sabor favorito.
‒ É, eu gosto sim. – afirmo, e começo a degustar aquela maravilha.
‒ Bom, é o meu favorito depois do de morango com calda de caramelo. Não sabia o que trazer pra você, então trouxe este.
“Ah, ele não sabia que é o meu favorito, mas é o favorito dele também”. Aceno com a cabeça mais uma vez, o sabor de baunilha me deixando com uma sensação de conforto inexplicável.
‒ Então, sobre hoje, - ele diz, e parece desconfortável – eu queria pedir desculpas, não fiz aquela brincadeira por mal, juro. – e ele parece realmente arrependido  e  triste  por  um  momento.  –  A  gente não estava  agindo certo mesmo, e eu sei que devia prestar mais atenção, mas eu não fiz por mal. Foi só pra descontrair. Não quero que fique mal comigo, poxa.
Não sei se é a cara de garotinho arrependido que chutou a bola no vidro da janela que ele tinha, mas minha consciência pesou, e eu pensei que fui realmente grossa, não só com ele, mas com as meninas também. Na verdade, nunca estive tão estressada como hoje à tarde, e nunca me exaltei desse jeito, mas não sei o que me deu, e então eu extrapolei e acabei sendo estúpida. É certo que a Helô precisava realmente focar mais na matéria, mas com essa distração toda eu acho que ela realmente não conseguiu.
‒ Ok, eu entendo.
‒ Sério? – e seu olhar se ilumina. Parece que acabei de tirá-lo da forca. Gente, não é pra tanto assim, né?
‒  É,  sério.  Eu  realmente  passei  da  conta,  mas  vocês  não  estavam prestando atenção, e eu não ia ficar lá dando uma de palhaça, então aconteceu. E acho que eu também tenho culpa, me desculpe.
‒ Ah, ufa! Ainda bem que você não tá chateada, – ele suspira. “Ah, meu Deus, que drama!”. – Eu não queria ter que parar de vir aqui... sabe, pra estudar. Eu tô indo bem melhor agora, e você explica de um jeito mais fácil. Sei lá, acho que você leva jeito pra explicar matéria.
Eu olho pra ele e agora está sorridente de novo. Ele puxa uma mecha do meu cabelo e começa a brincar com ele, e então me dou conta de que estamos muito próximos. “Como isso aconteceu?”, eu me pergunto. E então ele olha bem dentro dos meus olhos, aquelas lindas bolas de gude cor de mel me encarando, coloca meu cabelo atrás da orelha e se aproxima mais. Sei que vai tentar me beijar, então me afasto e consigo ver o biquinho dele parado no ar. No mesmo instante, começo a gargalhar sem parar, e ele me encara sem entender o que aconteceu. Meus olhos começam a lacrimejar e sinto que minha barriga está prestes a doer, mas nem o som do riso sai mais, e pareço uma foca engasgada com o almoço, batendo as mãos.
‒ Ai, você é inacreditável! – limpo meu olho com as costas da mão e tento me recompor respirando fundo, e falho terrivelmente, começando a rir de novo.
‒ Po-por que você... eu não entendo, – ele fica confuso, e franze a testa – você não quer me beijar? – ele diz, meio pedindo e meio perguntando.
‒ Eu não sou muito de ficar, desculpa. – e dou mais risada. – Cara, eu nem sou beijável, estou uma monstra e não sou o seu tipo. Não querendo ofender, mas  você  não  me  serve.  Eu  gosto  de  romances,  e  conquista,  e  longas conversas, e passear de mãos dadas. Tudo bem que nunca um cara olhou pra mim desse jeito ou com essa intenção, mas é o que eu imagino pra mim, e não é o que você parece estar querendo.
‒ Pra falar bem a verdade, é sim. – ele me olha, coçando a nuca, sem jeito. – E você tá errada de falar que não é beijável, eu mesmo não consigo parar de pensar em beijar você quando olho pra sua boca.
Eu achei nessa hora que meus olhos iriam cair da minha cara de tão arregalados que estavam. O olhar dele era morno e sincero, quase tímido, e eu não sabia o que pensar. Esse cara quer ME BEIJAR?!! E não para de pensar nisso quando olha pra minha boca! “Que diabos está acontecendo aqui?!”, eu penso. “Ele só pode estar tirando sarro da minha cara, só pode!”. Eu sinto meu rosto corar e termino meu milk-shake, sem saber o que dizer. Não consigo encará-lo, porque sei que se eu olhar pra ele terei que dizer alguma coisa, e eu realmente não sei o que dizer. O silêncio se torna cada vez mais constrangedor, e de repente ele puxa meu queixo e me encara intensamente.
‒ Olha, eu venho pensando nisso desde os primeiros dias no grupo de estudos, sério. Até terminei com a Danielle porque não conseguia parar de pensar em beijar você. Não entendo bem como isso aconteceu, mas é o que eu sinto, entende? Você é esperta, engraçada e sempre atenciosa, além de superinteligente, e pode não achar, mas é bonita também. Quando você ficou irritada hoje eu senti como se tivesse feito uma burrada imperdoável, e eu não me senti assim com nenhuma das minhas ex, nunca. Eu tinha que vir falar com você e me desculpar, e como sempre você foi compreensiva e me desculpou, e eu senti um alívio imenso. Eu me sinto bem com você, mas eu não sei mesmo outro jeito de... bom, você sabe... me aproximar de uma garota. – ele fica cabisbaixo. Meu cérebro entrou em curto e sinto meu estômago virar uma batedeira. Sim, isso foi uma declaração, e não sei se ela é sincera, mas os olhos dele são, e sua voz foi firme, mas incerta, como se ele estivesse hesitante tentando não errar.
‒ Por favor, diga alguma coisa. – ele implora, seus olhos brilhando de... sei lá, expectativa talvez. Eu solto a respiração com dificuldade, e então confesso:
‒ Eu... é que... hum... eu nunca beijei na vida. – e tampo o rosto com as mãos, minha cara queimando de vergonha. – Pronto, falei!
Cara, que vergonha! Como é que eu pude falar isso pro garoto mais disputado da escola? Tento olhar por entre meus dedos para ele, e não sei definir sua expressão. Parece que vai rir, mas seus olhos estão sérios, como se eu tivesse dito algo crucial.
‒ Porque tá me olhando desse jeito? – eu pergunto, ainda com as mãos na cara.
E então ele pega minhas mãos e as tira do meu rosto, dizendo:
‒ Estou tentando entender o porquê de você cobrir o rosto depois de me contar isso. Ser sincera não é vergonha pra ninguém, e eu sei que está me dizendo a verdade.
No momento, acho que minha cara está um misto de espanto e surpresa por ouvir isso dele, e entendo que realmente não devia tomar como verdade os
comentários de que ele é um pegador insensível. Se ele coleciona corações é pura e simplesmente por que os conquista.
‒ Bom, você tem que admitir que não é todo dia que uma garota te diz que nunca beijou ninguém. Geralmente as pessoas riem ou zoam comigo quando eu falo, mas pra mim tem um significado bem maior, como eu te disse. Eu espero amar até o fim da vida o primeiro que eu beijar, e só beijar ele daí em diante. E eu sei que é praticamente impossível que isso aconteça, mas pra mim... eu acho que posso conseguir, de alguma forma.
‒ Eu entendo. – ele diz, e sua boca se torna uma linha de frustração. – Bom, está ficando tarde e eu tenho que ir pra casa. Seu pai está?
“Se meu pai está? Que pergunta estranha de se fazer!”, pensei. Eu acabo de  expor  meus  sentimentos  e  pensamentos  como  alguém  que  conta  uma história e ele me pergunta do meu pai? É, isso tá esquisito. Mesmo nessa situação, respondi:
‒ Tá sim, algum problema?
‒ Não, nenhum. Só me lembrei que tinha que conversar com ele sobre um assunto, nada demais. Será que ele pode falar comigo agora?
‒  Ah,  claro!  Hum...  quer  dizer,  eu  acho  que  sim...  errr,  espera  um minutinho, já volto.
Me levanto num pulo, e antes de abrir o portão percebi o quão burra fui de estar entrando sozinha, sendo que depois ele iria entrar de qualquer forma. Por reflexo, bati a palma da mão na testa e me virei.
‒ Não acha melhor entrar? Tipo, adianta o expediente, né?
‒ Tá, tudo bem. – e ele se levantou, pegou o skate e me seguiu. Foi levemente constrangedor, não pelo fato de estar atrás de mim e eu sentir intuitivamente que ele estava me “analisando” por trás, mas ainda mais pelo fato de que a nossa conversa tinha sido um pouco... sei lá, íntima demais. Pelo menos pra mim. Assim que entramos, gritei:
‒ Pai, visita. Parece que quer conversar com você.
  Obtive a resposta imediata:
‒ Peça para ir até a biblioteca, estou descendo.
‒ Bom, você ouviu, já pra biblioteca! – falei, com um tom de autoridade pra descontrair. Ele soltou um risinho meio abafado, e em seguida se inclinou e me deu um beijo no rosto, logo após sussurrar em meu ouvido:
‒ Bons sonhos, doce Julieta.

***

  Ainda me pergunto como ele sabia que é minha história favorita, e se ele é realmente o Romeu que eu tanto esperava. Talvez esteja mais pra um Don Juan, talvez seja o sapo que nem com beijos se torna príncipe. Minha última opção seria algum ser místico capaz de atrair garotas e roubar seus corações sem dó.
  Caberia certinho, não fosse o fato de que possivelmente eu possa ter tido – mesmo que por poucos instantes, e sem perceber – o coração dele nas minhas mãos.
Descobri que foi nesse dia que ele pediu permissão ao meu pai para me namorar, e também que foi nesse dia que eu comecei a me apaixonar, e nem lembro o porquê me apaixonei. Dizem que quando não tem explicação e nem motivo, o amor é duradouro.
  Queria que isso fosse mentira, mas acho que é o caso. Fico lembrando de doces momentos aqui, na solidão da minha torre de marfim – que aliás, é de alvenaria mesmo – ouvindo em alto e bom som uma das músicas que eu mais considerava compatível com a minha situação. Percebo momentaneamente que ainda é muito parecida comigo em relação ao Sr. A. “Eu não consigo te dizer não”, a música diz, e eu sei que a minha realidade não difere disso. Eu não consigo comer, e meu sono sai pelos poros mais rápido que o suor. No entanto, acima da voz doce da vocalista, ouço uma comoção lá fora e quando menos espero Helô está dentro do meu quarto, desligando o meu estéreo.
‒ Ei! Qual é a sua? – protesto indignada. Ela pode ser minha amiga, mas eu tenho direito a um momento sofrência adequado.
‒ Olívia disse que está voltando do intercâmbio depois de amanhã, mas você não atendia ao telefone, então ela me pediu para avisar, e eu vim. De nada, sua ingrata.
Encaro Heloísa boquiaberta e não consigo raciocinar tão rápido para responder. Ela realmente não gostou da minha reação à entrada triunfal dela no meu quarto, pois nem se jogou na minha cadeira de balanço como sempre faz, e continua de pé, com os braços cruzados e fazendo beicinho, esperando que eu me  desculpe  e  reaja  corretamente.  Pego  o  meu  celular,  e  vejo  que  Olívia poderia dizer sem exageros que me ligou mais de cem vezes, além de deixar mensagens na caixa postal, mandar mensagens em todas as redes sociais e no meu número, pedindo pra retornar ou ao menos responder. Bati na testa, e de novo e de novo...
‒ Mas... depois de amanhã é...
‒ É o que? – diz Helô, meio aflita.
‒ Aniversário dele.

O Colecionador de CoraçõesOnde histórias criam vida. Descubra agora