Três/ Quatro anos

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Meu menino estava aprendendo cada vez mais rápido a falar, e uma das coisas que ele mais gostava de fazer era cantar. Uma vez, enquanto Maura estava com ele no banheiro lhe dando banho, ele começou a cantarolar Hey Jude. Maura sorriu de orelha a orelha vendo aquela pequena criaturinha cantar tão bonitinho a música dos Beatles.
E eu nem se podia dizer, meu coração estava saltitante dentro do peito.
Quando Maura o deixava brincando sozinho mais uns minutinhos na banheira, eu me materializava e entrava na banheira junto com ele.
- Flor. - Ele dizia sorrindo me olhando, espirrando água com o patinho de borracha em mim.
-Nialler. - Seu apelido era como música para mim, eu adorava chama-lo daquele jeito, e ele adorava quando eu o chamava daquele jeito.
-Olha - Ele colocou o patinho com tudo debaixo da água, e eu fiquei olhando o que aconteceria, até que o patinho subiu muito rápido e jogou agua em meu rosto. Tapei os olhos fingindo dor enquanto Niall começou a rir, então ele parou vendo o meu estado - Flor? - Ele se aproximou de mim colocando as mãozinhas em meu rosto, enquanto eu me encolhia devagar. - Flor? Machucou? Descu... - E era nesse exato momento em que eu tirava as mãos do rosto rindo e jogando água nele. Ele me empurrava e começávamos a brincar de guerrinha até Maura aparecer e eu desaparecer num instante.
-Com quem estava brincando? - Maura sempre perguntava, com Amber atrás dela me olhando. Ela estava tão acabada com as birras de Greg e com as brigas que Maura havia tido constantemente com Bob, e Amber tinha tido com Marcus, que nem se dava ao trabalho de notar que eu estava inteira molhada. Nem se dava ao trabalho de notar que tinha fracassado em seu trabalho.
Ela só queria que as coisas se resolvessem com Bob e Marcus, estava tão preocupada com isso quanto Maura em si.
Não tinha tempo para cuidar de um anjo rebelde.
- Com a Flor. -Outra frase que ele havia aprendido a falar perfeitamente.
Maura, de tanto que tinha ouvido meu apelido, me conhecia agora na "língua dos adultos": Eu era a amiga imaginária de Niall.
Os adultos têm cada palavra estranha para as verdades que as crianças dizem.
Alícia veio mais cedo naquele dia. Greg iria ficar o dia inteiro na escolinha para o projeto de música, Maura e Bob estavam atarefados com seu trabalho, então Niall teria que ficar praticamente sozinho o dia inteiro em casa.
No começo, era só Alícia e Leo. Fiquei conversando com Leo enquanto Alícia brincava com Niall, lendo historinhas para ele e cantando músicas de uma banda chamada Eagles. Niall adorava as músicas e ficava se balançando no colo dela. Witchy Woman era uma das músicas favoritas de Alícia, além de The Best Of My Love. Niall gostava de fechar os olhos quando ela cantava essa música, e eu fazia o mesmo, deitada no chão, ouvindo Leo cantar com ela, as vozes deles ficando num conjunto maravilhoso.
Mas nada superava Take it Easy. Sei que parece meio clichê gostar de um sucesso, uma música que já é um hit, mas Take it Easy era uma música que você simplesmente não conseguia tirar da sua cabeça nem que você a chacoalhasse o dia inteiro. Alícia costumava colocar essa música para tocar, e Niall ficava dançando com ela animadamente. Leo e eu éramos a mesma coisa, dançávamos loucamente, como se não houvesse amanhã, já tendo até decorado a música.
Era engraçado ver como a música alegrava-nos tanto. Ficava me perguntando o que seria do mundo sem a música.
Enquanto Alícia fazia o almoço, com One Of These Nights tocando, Niall sentado na cadeirinha batendo no prato no ritmo da música e Leo e eu sentados na bancada cantando a parte que mais gostávamos:

I've been searching for the daughter
Of the devil himself
I've been searching for an angel in white.
I've been waiting for a woman who's a little
Of both
And I can feel her but she's nowhere
In sight

A campainha tocou no exato momento.
Alícia, mais do que depressa, largou tudo que estava fazendo para ir atender a porta, e Leo foi o mais rápido que podia ir atrás dela. Niall ficou olhando aquilo tudo confuso, assim como eu.
De repente, uma pessoa muito estranha entrou pela porta. Era uma mulher. Só podia ser uma mulher.
Se eu estivesse, como realmente dizia na música, procurando pela filha do diabo em pessoa, eu havia acabado de encontrá-la.
Não que a menina fosse feia. Não, não mesmo. Ela era maravilhosa.
Os olhos dela eram azuis como os de Niall, chego até a poder dizer que eram mais claros. As sardas no rosto, os dentes com uma pequena abertura no meio, deixando o sorriso dela cativante e ao mesmo tempo sedutor, a roupa... bem, era como se ela fosse um menino. Usava uma jaqueta de couro preta, uma blusa branca por debaixo dela, a calça jeans e os sapatos surrados, mas isso não era o que me deixava encantada. Era o cabelo dela. Curto, embaixo ruivo, dava para perceber, mas tinha umas mechas roxas.
Virei a cabeça para o lado tentando ver se enxergava direito, se o cabelo era realmente daquela cor.
Como alguém podia ter nascido com o cabelo daquela cor?
Fiquei ali parada por um tempo só olhando a menina que, quando notei o anjo ao seu lado, vestindo as mesmas roupas e com o cabelo da mesma cor eu quase cai de onde eu estava. Leo estava rindo de mim quando trouxe o anjo para me conhecer. Eu nem o deixei falar o próprio nome.
-Você nasceu com o cabelo assim? Tem como ter o cabelo assim? É INCRIVEL! - Soltei meu melhor gritinho levando a mão para tocar no cabelo dele, e ele era mesmo real - Meu Deus como você faz?
-Calma, Mavis - Leo diz sorrindo tentando me fazer acalmar. Respiro fundo tentando parar de sorrir, mas isso é impossível. - Este é Jay, o anjo de Margot.
-Oi - Jay fala sorrindo estendendo a mão para mim, que a aperto devagar. - E não dá para nascer com o cabelo assim, Mavis. Margot o pintou, e o meu acabou ficando igual o dela.
-Ficou muito bonito. - Digo sorrindo, só então percebendo que minhas bochechas estavam quentes. Jay sorri e despenteia meu cabelo, se voltando para Margot, que estava na frente de Niall lhe dizendo "oi".
Niall colocou as mãozinhas no cabelo dela como eu fiz com Jay, rindo todo bobo vendo as cores.
Senti meu coração ficar quentinho com a sua risada.
Margot ajudou Alícia a terminar de fazer o almoço, entregando a Niall um pratinho com papinha, que ele comeu mais que depressa.
Niall ficou brincando um pouco no cercadinho enquanto Alícia e Margot assistiam TV, mais próximas do que amigas deveriam ser. Fiquei prestando atenção em Niall brincando com seu carrinho e quando me voltei para as duas, elas estavam se beijando. Fiquei de boca aberta.
-Lembra quando eu te falei que Alícia estava com problemas para discernir seu sexo? - Leo se aproximou de mim, levantando meu queixo para que eu fechasse a boca. Niall olhava para o mesmo lugar que eu. - Era isso que eu queria dizer.
-Mas isso pode acontecer? Elas podem se beijar? - Perguntei para Leo na maior inocência, afinal, eu ainda era uma criança, e ele era bem mais velho.
-Claro que podem, Mai. - Jay se aproximou de mim, passando as mãos em meus cabelos.
- É comum? - Pergunto para eles, curiosíssima
-Claro que é Mavis. Nós não escolhemos por quem nos apaixonamos. - Leo diz, se voltando para as duas. - Embora algumas pessoas discordam disso - Ele diz isso tão baixinho que preciso me aproximar dele para entender.
Assim que Maura e Bob chegam com Greg, só estava Alícia em casa. Margot já tinha ido a muito tempo.
Me despedi de Leo enquanto Maura levava Niall para a cama, que estava quase caindo de sono, pois já tinha tomado o seu leite. Maura o colocou na cama e eu me deitei ao lado dele, me encolhendo. Quando Maura saiu do quarto, mais cansada do que aparentava estar de manhã, eu me materializei me agarrando a Niall.
-Flor? - Sua voz saiu tão baixinha quando sua mão tocou meu rosto - Alícia e Margot... Podi?
-Acho que sim, pequeno. - O olho, os olhinhos dele tão curiosos quanto os meus. - Não escolhemos quem vamos amar.
-Mas são meninas - Ele deixou a boca se formar num biquinho fofo, como se tentasse com todas as forças entender aquilo.
- Eu não vejo problema nisso, Nialler. - Afaguei seu cabelo devagar - Devemos aceitar as pessoas do jeito que elas são.
-Tudo bem. - Ele diz, com a voz carregada de sono, e se agarra a mim. Dormimos grande parte da noite daquele jeito.
Niall completou seus três anos tão alegremente quanto tinha completado sues dois aninhos. Felizmente, nenhum menino caiu na água naquela festa, porque estava frio demais para que sequer nos aproximássemos da piscina.
Mas uma menina tropeçou e quebrou o vaso de flores favorito de Maura.
Seu anjo disse desculpas mais do que a própria menina.
As brigas de Maura e Bob tinham se tornado um pouco mais frequentes meses depois do aniversário de Niall.
Amber estava literalmente acabada. Ela nem sequer falava bom dia quando acordava, eu nunca a tinha visto daquele jeito, tão triste, tão morta.
Parecia que toda luz de seu ser fora apagada
Foi naquele momento que eu soube que os anjos, de alguma forma, tomam todas as dores de seus protegidos para si, deixando que, mesmo que os protegidos ainda sintam dor, é uma pequena parte de um todo enorme, que Amber carregava em suas costas. A dor dos humanos pode ser superada graças a grande parte da dor que tomamos para nós, a que eles não sentem, uma dor tão arrebatadora e insuportável, vinda do fundo do coração do ser humano. Sentimentos obscuros que nenhum ser humano ou anjo conhece o nome.
Tudo que eu sei é que aquilo deixou Amber acabada.
Chegava a doer o coração vê-la daquele jeito. Eu queria tentar ajudar, mas toda vez que eu me aproximava ela se afastava de mim. Eu não sabia mais o que fazer.
Niall odiava quando Maura e Bob discutiam de noite. Ele se agarrava a mim para chorar.
-Não goto disso. - Ele dizia baixinho enquanto eu afagava seus cabelos, tentando acalma-lo de alguma forma.
-Nem eu - O mais baixinho que eu podia, cantava Hey Jude para aliviar seu coração, para que ele dormisse em paz e não precisasse ficar se preocupando com as brigas dos adultos.
Ele era só uma criança.
Greg, com as brigas de Maura e Bob mais frequentes (eu nem sequer entendia o motivo) tinha voltado a ser insuportável.
Ele queria chamar toda a atenção para si, e o único jeito de fazer isso era importunando o irmãozinho. Roubava seus brinquedos, derrubava sua comida no chão, xingava e tudo mais que ele podia fazer.
Eu já estava brigando com Aaron novamente pois ele não sabia cuidar de seu próprio protegido, Marcus e Amber já nem tentavam nos impedir.
A casa estava um completo inferno. Os únicos momentos calmos eram as noites e a hora do banho. Niall e eu ficávamos sozinhos para conversar e brincar, e as vezes até cantar.
Eu não queria deixar meu pequeno naquele mundo de adultos, queria traze-lo de volta ao mundo das crianças. Ele não merecia passar por aquilo. Meu pequeno era tão doce. Não queria que ele quebrasse.
Enfim, passados uns três meses desde que Alícia trazia Margot, e consequentemente Jay, para ficar ali enquanto ela estava cuidando de Niall, Leo não estava feliz como das últimas vezes.
- Os pais dela não aceitam que ela tenha "amor" por Margot - Ele diz, parecendo cansado, assim como Amber, sentado ao meu lado, com Jay do outro lado, parecendo ruim do mesmo jeito, e eu ali no meio.
-Os pais de Margot também não. - Jay diz baixinho, se agarrando a mim.
Um adolescente procurando consolo numa criança.
-Elas planejam fugir, Mavis. - Leo choraminga baixinho se agarrando a mim também. - Eu não quero isso para Alícia, entende? Ela ama os pais dela. Eu quero que ela seja feliz com eles e com Margot, porque ela a ama também. Mas os pais dela não querem deixar ela ser feliz com Margot. Por que eles não podem simplesmente aceitar?
Enxugo as lágrimas dele devagar, suspirando baixinho sem saber ao certo o que dizer.
- Por que as pessoas são tão cruéis consigo mesmas? - Jay choraminga do outro lado, escondendo o rosto no meio dos meus cabelos.
-Às vezes. - Começo baixinho, afagando o cabelo dos dois - As pessoas são desse jeito porque, de certa forma, isso se torna uma barreira, uma caixinha, que as protege do lado de fora, e que guarda dentro de si todos os conceitos, todas as verdades nas quais elas acreditam. Às vezes Leo, os pais de Alícia não aceitam não porque não a amam, mas porque eles ainda estão dentro da caixinha, por trás dos muros, acreditando no que é correto para eles, com medo de aceitar que há outras coisas corretas também, com medo de sair da caixinha.
-Isso faz sentido. - Jay diz baixinho, enxugando o nariz com a palma da mão.
-Mavis eu só queria que houvesse outro jeito. Uma maneira de destruir essa caixinha. - Leo diz baixinho apertando mais seu corpo contra o meu. - Eu queria proteger Alícia de todas as coisas que a afligem.
Olho para Niall na hora. Brincando com seus brinquedos já fora do cercadinho, no tapete felpudo, com um olhar de criança triste, pelos pais, pelas maldades do irmão.
Eu também queria protege-lo. De tudo. Colocá-lo dentro da minha caixinha e ficar com ele lá até que tudo que pudesse ser capaz de machuca-lo desaparecesse.
Um pouco antes de Niall completar quatro anos, Alícia fugiu com Margot. Maura recebeu essa notícia pelo telefone, pela mãe de Alícia. Ela ficou muito triste. Não tinha mais quem cuidar do Niall, embora já no começo de janeiro do ano que vem ele fosse para a escolinha, Maura precisava de alguém que cuidasse dele durante setembro, outubro e novembro.
Niall não queria que eu alguém substituísse Alícia, assim como eu não queria que alguém substituísse Leo. Mais um de meus amigos, junto com Jay, tinha ido embora.
Agora além de Callum e Kian, eu tinha Leo e Jay para guardar em minha memória.
No seu aniversário de quatro anos, meu pequeno não estava tão feliz assim. Ele podia ainda ser uma criança, mas sabia muito bem o que estava acontecendo, e não gostava nada disso.
Sua alegria só voltou quando ele ganhou um pequeno violão para tocar. Ele brincou com ele o dia inteiro, e a noite inteira, e no dia seguinte, e no dia seguinte ao dia seguinte. Aquele violão seria o começo de algo, eu podia sentir.
Meu pequeno estava crescendo tão rápido.

Hey Angel |N.H.Onde histórias criam vida. Descubra agora