VI

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O copo cheio de cacau quente e eu cheia de pensamentos.

As minhas mãos aquecem-se pela fervura que o copo traz consigo, tentando descongelar o inverno que atravesso e que me atravessa no interior. Está frio, e eu estou fria. Já não tenho as tuas mãos a aquecerem o meu corpo, as tuas palavras a aquecerem a minha mente. Já não tenho o meu espaço na tua cama, nem tenho o teu cheiro nas minhas mãos. Já não existem mensagens, já não se formam pensamentos. Já só existem memórias das quais não posso fugir, das quais me têm alimentado ao mesmo tempo que magoado. Já não te pertenço, já não me pertences.

O café está cheio. As pessoas estão contentes e descontraídas enquanto pegam nos seus copos de café ou cacau, e quando deixam o liquido quente tocar nas suas línguas e escorrer por todo o interior, um sorriso preenche as suas faces. Um sorriso de como quem se entrega a sensações e sabores momentâneos, um sorriso de como quem se sente em casa. Um sorriso que, só me lembro dar, quando estavas por perto. Lembras-te? Aquele sorriso que eu te entregava, aquele sorriso que todos sabiam que era teu? Esse era o meu sorriso de entrega a sensações e sabores momentâneos. Um sorriso de 'sinto-me em casa'. Hoje, não me sinto em casa. E ando à busca da minha nova casa. Mas nenhum lugar ou pessoa me consegue fazer sorrir dessa forma. Não me consigo, simplesmente, deixar levar por outras palavras e colocar-me à vontade na vida delas, como se estivesse em casa. Não são as tuas palavras. Não é a tua vida. Não é a minha casa. O lugar ao lado da grande janela que dava para a rua de Lisboa à noite era o meu favorito. Especialmente às seis da tarde. A confusão nas ruas era tão grande e eu gostava de, discretamente, observar as pessoas a apressarem-se para regressarem a casa. A comprar o jantar no restaurante take-away que existia ao fundo da rua ou a carregar caixas brancas da pastelaria da esquina. Era uma algazarra naquelas ruas, àquelas horas. E talvez eu gostasse tanto de admirar a confusão porque eu própria era uma.

Deixo o dinheiro em cima da mesa e, agarrando no meu copo de cartão branco, preparo-me para sair do estabelecimento e seguir a minha vida. Mas eu sabia que me estava apenas a enganar. Eu sabia não iria seguir com a minha vida. Eu sabia que apenas estava a deixá-la escorrer pelas ruas de Lisboa, pelos passeios que todos os dias caminho sobre. Estava apenas a entregar-me a uma rotina. Uma rotina de solidão, tristeza e fracasso. Ironicamente, todos os dias sabia que errava por fazer isso, mas todos os dias cometia o mesmo pecado.

O copo estava agora vazio. E eu vazia estava.

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⏰ Last updated: Feb 04, 2016 ⏰

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