Conto 2 - Fúnebre Visão

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Era como se acordasse pela primeira vez. Sentiu o corpo emergir da escuridão, como se uma bóia, amarrada a si, forçasse seu corpo a subir, a sair das profundezas de um oceano negro e inerte. Faltava-lhe fôlego e o desespero invadiu seu peito quando o pressentimento de que algo único e especial estivesse prestes a ocorrer.

Abriu os olhos; e a visão de um céu cinza e monótono a aliviou. Estava de pé e, a poucos metros adiante, encontrava-se o pilar do último andar de um prédio de aproximadamente vinte e cinco andares. Lembrava-se daquele lugar. Lembrava-se daquela mesma visão... Mas quando?

Seus cabelos, grandes e negros, voavam com a brisa forte e algumas gotas de chuva começavam a molhar seu rosto. Mas não sentia o toque da água... Muito menos do vento. Sabia que as gotas batiam em sua pele, porém a conhecida sensação de se molhar, o frescor que a água traz ao bater... Não, ela não conseguia sentir. Contudo aquilo não importava, só desejava saber o que fazia ali, em cima daquele edifício, olhando para aquela cidade estranha, quieta, mas que lhe era familiar.

Flashes passavam por sua mente, contudo nenhuma imagem fazia com que sua memória voltasse. Não sabia sequer seu nome, não se lembrava de sua família, mesmo sabendo que ela existia. Rostos iam e vinham diante de seus olhos, porém nenhum despertava lembranças, nenhum tinha significado. Levou a mão ao rosto; uma tentativa desesperada de tirar as faces da cabeça e, de imediato, pareceu funcionar.

O silêncio se proliferou, dando espaço somente para o som fúnebre do vento, que levantava seus cabelos e seu vestido vermelho-sangue. Continuava cabisbaixa, com a mão cobrindo o rosto, quando ouviu um som diferente. Tão triste e fúnebre quando o assoviar do vento.

Um choro.

Olhou para o lado, assustada, e uma garota tentava se livrar das lágrimas que insistiam em descer. Também tampava o rosto, como se estivesse envergonhada de algo. Envergonhada e extremamente abalada. A garota, distante não muito mais do que cinco metros, se escorava na pequena barreira de concreto e tijolo que a impedia de cair edifício abaixo.

Ela se aproximou da garota que chorava, por um momento, esquecendo-se de que nada ali fazia sentido. Seus passos cautelosos e constantes não faziam barulho, não deixavam marcas no chão já molhado pelas gotas de chuva. Agora, ela estava dois metros mais próxima da outra mulher e mesmo assim, não era possível ver seu rosto. Mas o choro... Ela conhecia aqueles soluços.

-Você tá bem? – perguntou, entretanto foi o mesmo que falar com o nada, a garota sequer se moveu.

O choro cessou e a garota, que também usava um vestido vermelho-sangue, levantou a cabeça, mostrando a face triste e inchada. E ao olhar para o rosto da garota, ao ver seu sofrimento, uma efervescência de recordações e emoções consumiu seu ser.

Era ela... A garota que chorava, era ela.

Mas como?

Pasmada, viu quando seu outro eu segurou a mureta, fazendo força para subir. Lembrou-se daquela cena, da sensação de tocar o concreto áspero da mureta, já tinha estado ali antes, no lugar daquela menina, que na verdade era ela. Já tinha chorado como ela estava chorando, já tinha sentido aquela certeza de fazer o que seu outro eu estava prestes a fazer.

Sabia o que ela estava pensando naquele momento: o toque do concreto... Tão áspero e inerte quanto o muro que separava a rua e a quadra de futsal do seu bairro, no subúrbio dos arredores de Brasília.

Era uma criança de aproximadamente sete anos quando se mudou para o Distrito Federal. Fora difícil deixar sua terra, no interior de Goiás, porém era o melhor para a família, mesmo ela não sabendo o porquê, na época. Achou que seria difícil se acostumar com o novo lar, contudo, quando seu irmão, Gabriel, encontrou a quadra de futsal, cheia de mato e lixo, sentiu que tinham um espaço somente deles. Sentiu que havia perdido as árvores, mas tinha recebido em troca uma quadra todinha para que os dois pudessem brincar.

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