Continuação

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Este é John Milton, falando por meio de Satã, sua ficção mais brilhante. E por acaso eu acredito que o velho companheiro - os dois velhos companheiros acertaram.

O ar do campus Morningside da Columbia está úmido com o estresse das provas e a limpeza apenas parcial de uma chuva em Nova York. Acabei de terminar minha última aula do primeiro semestre, uma ocasião que sempre traz um alívio agridoce, a consciência de que outro ano acabou⁴ ( a preparação das aulas, as horas administrativas e as avaliações quase terminadas ), mas também de que outro ano passou ( e, com ele, mais um doloroso clique no hodômetro pessoal ). Apesar disso, ao contrário de muitos dos resmungões mimados que me cercam nas funções docentes e se excitam com inúteis questões de ordem nas reuniões de comitê dos departamentos, eu ainda gosto de dar aulas, ainda gosto dos estudantes que estão se deparando com literatura adulta pela primeira vez. Sim, muitos deles estão aqui apenas na situação pré-Algo que Vai Dar Dinheiro de Verdade - pré-Medicina, pré-Direito, pré-casamento com alguém rico -, mas muitos ainda não estão fora de alcance. Se não do meu alcance, então do da poesia.
Agora são três da tarde. Hora de atravessar o pátio de ladrilhos até a minha sala no prédio da Filosofia, deixar lá a ninhada de trabalhos de fim se ano atrasados, largados com muita culpa em minha mesa na sala de aula, e depois ir para a estação Grand Central encontrar Elaine O'Brien para nosso drinque de encerramento anual no Oyster Bar.

Apesar de Elaine dar aulas no Departamento de Psicologia, sinto-me mais próximo dela que se qualquer um de Inglês. Na verdade, sinto-me mais próximo dela que de qualquer um que conheço em Nova York. Ela tem a mesma idade que eu - quarenta e três em boa forma, graças a quadras de squash e meias maratonas -, viúva, seu marido levado por um derrame vindo só nada há quatro anos, na mesma época em que cheguei a Columbia. Gostei dela imediatamente. Dotada de algo que passei a considerar um senso de humor sério: ela conta poucas piadas, mas faz observações sobre os absurdos do mundo com uma perspicácia que, às vezes, consegue ser esperançosa e devastadora ao mesmo tempo. Além disso,  uma mulher de beleza calma, eu diria, ainda que eu seja casado - no presente momento pelo menos - e que admitir esse tipo de admiração por uma colega mulher com quem ocasionalmente bebo possa ser, como o Código de Conduta da Universidade gosta de designar praticamente todas as interações humanas, " impróprio ".
Porém, nunca houve nada remotamente impróprio entre O'Brien e eu. Nem um ínfimo beijo roubado quando ela toma seu trem na linha New Haven, nem uma especulação leviana sobre o que poderia acontecer se nós corressemos para o quarto de algum hotel en Manhattan para saber, pelo menos uma vez, como seríamos na cama. Não é repressão o que nos impede de fazer isso - eu, pelo menos, não penso que seja -, nem se deve, inteiramente, ao fato de ambos honrarmos meus votos matrimoniais ( já que nós dois sabemos que minha mulher os jogou pela janela há um ano por aquele idiota presunçoso da Física, o afetado adepto da teoria das cordas, Will Junger ). Acho que O'Brien e eu ( ela só é " Elaine " depois do terceiro Martín ) não empurramos as coisas nessa direção por temer que isso possa corromper aquilo que temos. E o que temos ? Uma profunda, ainda que assexuada, intimidade, de um tipo que jamais conheci com qualquer homem ou mulher desde a infância, talvez nem mesmo naquela época.
Ainda assim, creio que nós tenhamos uma espécie de caso, que vem durando quase todo o tempo de nossa amizade.
Quando estamos juntos, falamos de coisas sobre as quais não converso com Diane há algum tempo. Para O'Brien, é o dilema de seu futuro: ela teme a perspectiva de envelhecer solteira, ao mesmo tempo que reconhece ter se acostumado a ficar só, indulgente com seus hábitos. Uma mulher " cada vez mais incansável ", como ela mesma diz.
Para mim, é a nuvem negra da depressão. Ou melhor, o que eu relutantemente sou obrigado a chamar de depressão, assim como metade da população mundial já se auto-diagnosticou, ainda que esse termo não pareça totalmente adequado ao meu caso. Toda minha vida, fui perseguido pelos cães negros de uma inexplicável melancolia, apesar de toda boa sorte que tive na carreira, do casamento inicialmente promissor e da maior ventura de todas, minha única filha: uma menina brilhante e sensível, fruto de uma gravidez que todos os médicos disseram que não chegaria a termo, o único milagre que estou pronto a admitir como verdadeiro. Depois que Tess nasceu, os cães negros se afastaram por um tempo. Mas quando ela passou da fase de aprender a andar para o falatório da escolinha, eles voltaram, mais famintos que nunca. Nem meu amor por Tess, nem mesmo quando ela murmurava à noite Papai, não fique triste, podia mantê-los longe.
Havia sempre a sensação de que alguma coisa comigo não estava certa. Nada que se percebesse externamente - eu sou decididamente " civilizado ", como Diane me descreveu com orgulho quando começamos a namorar, mesmo termo que ela agora usa com tom de voz que tem conotações sarcásticas. Mesmo por dentro, sou honestamente livre de autopiedade e ambições frustradas, um estado atípico para um acadêmico de carreira. Não, minhas sombras vêm de uma fonte mais elusiva que as apontadas nos manuais. Com relação aos meus sintomas, são poucos, talvez nenhum, que possa marcar na lista de sinais de alerta dos cartazes do serviço público de saúde mental pregados no metrô. Irritabilidade ou agressão ? Só quando vejo o noticiário. Perda de apetite ? Sem chance. Venho tentando perder cinco quilos, sem sucesso, desde que me formei. Problemas de concentração ? Eu leio os problemas de Homens Brancos Mortos e trabalhos de estudantes de graduação para viver - concentração é o meu negócio.

Meu mal é mais uma presença indefinível que uma ausência que esgota todo prazer. A sensação de que tenho um companheiro invisível me seguindo diariamente, esperando por uma oportunidade, para conseguir um relacionamento mais próximo que aquele do qual já desfruta. Quando criança, tentei em vão emputar-lhe uma personalidade, como se fosse um " amigo imaginário " do tipo que as outras crianças diziam ter. Mas meu seguidor apenas me seguseguia - ele não brincava, nem me protegia ou consolava. Seu único interesse consistia - e ainda consiste - em ser uma companhia melancólica, maligna em silêncio.
Semântica professoral, talvez, mas para mim se parece mais com melancolia do que com desequilíbrio químico de uma depressão. O que Robert Burton chamou em A Anatomia da Melancolia ( publicada há mais de quatrocentos anos, no tempo em que Milton começava a esboçar seu Satã ) de " aborrecimento do espírito ". É como se minha própria vida fosse assombrada.
O'Brien praticamente desistira de me mandar ver um psiquiatra. Ela já tinha cansado de ouvir sempre a mesma resposta: " Para quê, se eu tenho você ? "
Eu me permito um sorriso neste momento, imediatamente apagado pela visão de Will Junger descendo a escadaria de pedra da Biblioteca Low. Acenando em minha direção como se fôssemos amigos. Como se o fato dele estar fodendo minha mulher há dez meses tivesse desaparecido de sua mente.

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