Continuação Parte II

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" David! Podemos falar ? "
Com que esse homem se parece ? Alguma coisa astuta e surpreendentemente carnívora. Alguma coisa com garras.
" Outro ano ", ele diz assim que para na minha frente, teatralmente sem fôlego.
Ele me olha meio de lado, mostra seus dentes. São expressões como essa, acredito, que contaram como " fascinantes " nos primeiros cafés com minha mulher depois da aula de ioga. Essa era a palavra que ela usou quando eu fiz aquela primeira, e sempre inútil, pergunta do corno: Por que ele ? Ela deu de ombros, como se não precisasse de uma razão e estivesse surpresa de que eu quisesse uma. " Ele é fascinante ", disse ela finalmente, pousando na palavra como uma borboleta que escolhe uma flor para descansar.
" Veja bem, eu não quero que isso seja difícil ", começa Will Junger. " Sinto muito pela maneira como as coisas aconteceram. "
" E como foi ? "
" O que ? "
" Como as coisas aconteceram ? "
Ele esticou seu lábio inferior, em uma imitação de dor. Teoria das cordas. É o que ele ensina, é sobre isso que ele conversa com Diane, provavelmente, depois de ele ter saído de cima dela. Como qualquer substância, se você reduzi-la ao essencial, ela se mantém unida por cordas incrivelmente finas.
Eu não entendo de substâncias, mas acredito que apenas disso que Will Junger é feito. Cordas invisíveis que levantam suas sobrancelhas e os cantos de sua boca, uma marionete habilmente manipulada.
" Só estou tentando agir como um adulto ", diz.
" Você tem filhos, Will ? "
" Filhos ? Não. "
" É claro que não. E nunca terá, sua criança egoísta ", respondo enchendo o peito com ar úmido. " Só tentando agir como um adulto ? Vá se fuder! Você pensa que esta é uma cena de peça de teatro indie no Village à qual você leva minha mulher, um bando de mentiras que um cara no New York Times disse que foram interpretadas de maneira bem naturalista. Mas na vida real ? Somos péssimos atores. Somos tão canastrões que chega a doer. Você não sente isso, mas a dor que você está nos causando - à minha família - está destruindo nossas vidas, o que temos juntos. O que tínhamos. "
" Escute, David. Eu... "
" Eu tenho uma filha ", continuo, atropelando-o. " Uma garotinha que sabe que algo está errado, e ela está escorregando para esse lado escuro, e eu não sei como tirá-la de lá. Você tem idéia do que é ver sua filha, que é tudo para você, desmoronar ? É claro que não. Você é vazio. Um sociopata summa cum laude que fala sobre literalmente nada para ganhar a vida. Cordas invisíveis! Você é um especialista do nada. Um vácuo que anda e fala. "
Eu não esperava dizer tudo isso, mas fiquei contente em falar. Mais tarde eu vou desejar entrar em uma máquina do tempo e voltar a este momento apenas para soltar um insulto mais bem elaborado. Mas, por ora, parece bastante bom.
" É engraçado que você diga isso sobre mim ", afirma ele.
" Engraçado ? "
" Irônico. Talvez seja o melhor termo. "
" Irônico nunca é o melhor termo. "
" Essa ideia, por acaso foi de Diane. Que nós conversassemos. "
" Você está mentindo. Ela sabe o que eu penso de você. "
" Mas você sabe o que ela pensa de você ? "
As cordas das marionetes foram puxadas. Will Junger sorri o inesperado sorriso de triunfo.
" Você não está presente, " ele diz. " É o que ela fala. 'David ? Como eu posso saber como David se sente ? Ele não está aqui.' "
Não há resposta para isso. Porque é verdade. Essa foi a sentença de morte do nosso casamento, e eu fui incapaz de corrir o erro. Não é vício em trabalhar, nem as distrações de uma amante ou de um hobby obsessivo, nem a distância de alguns homens tendem a assumir à medida que se arrastam para a meia-idade. Parte de mim - a parte da qual Diane precisa - simplesmente não está mais aqui. Ultimamente posso estar no mesmo aposento, na mesma cama, e ela tenta me tocar, mas é como tentar alcançar a Lua. O que eu gostaria de saber, o que eu rezaria para que me contassem se eu acreditasse que preces funcionam, é onde está o fragmento perdido. O que eu deixei para trás ? O que, em primeiro lugar, eu nunca tive ? Qual o nome do parasita que se alimentou de mim sem que eu percebesse ?
O Sol saiu, e de repente toda a cidade está banhada em vapor, as escadas da biblioteca reluzindo. Will Junger franze o nariz. Ele é um gato. Vejo isso agora, tarde demais. Um gato preto que cruzou meu caminho.
" Vai ser um dia quente ", ele diz, partindo sob a nova luz.

Passo pela estátua em bronze do Pensador, de Rodin ( " Parece que ele está com dor de dente ", disse uma vez Tess, inocentemente, sobre a obra ) e entro no prédio da Filosofia. Meu escritório é no terceiro andar, e subo as escadas segurando firme o corrimão, exausto pelo calor repentino.
Quando chego aí meu andar e viro no corredor, sou atingido por uma sensação de vertigem tão intensa que me apoio na parede e agarro os tijolos. Já tive, diversas vezes, ataques de pânico do tipo que podem deixar alguém momentaneamente sem fôlego, o que minha mãe chamava de " vertigem ".
Mas isso é algo completamente diferente. Uma nítida sensação de estar caindo. Não de um lugar alto, mas dentro de um espaço ilimitado. Um abismo que me engole, que engole o prédio, o mundo, en um único e implacável trago.
De repente acaba. E me deixa feliz por não ter havido testemunhas do meu abraço na parede.
Ninguém exceto a mulher sentada na cadeira ao lado da porta da minha sala.
Velha demais para ser uma estudante. Bem vestida demais para ser uma acadêmica. Inicialmente calculei que ela tivesse trinta e poucos, depois, chegando mais perto, ela parecia mais velha, seus ossos muito salientes, o envelhecimento precoce de quem tem distúrbios alimentares. Na verdade, ela parece estar morrendo de fome. Uma fragilidade que seu conjunto elegante e sua longa e tingida cabeleira negra não conseguem esconder.
" Professor Ullman ? "
Seu sotaque é, de forma genérica, europeu. Poderia ser francês, alemão ou tcheco com uma pitada de inglês americano. Um sotaque que mais esconde que revela suas origens.
" Não estou atendendo hoje. "
" Claro que não. Eu li o aviso na sua porta. "
" Você está aqui por causa de um estudante ? Alguém filho seu está na minha turma ? "
Estou acostumado com essa cena: o pai superprotetor, que assumiu a terceira hipoteca para colocar o filho em uma excelente universidade, faz um apelo em favor de sua Grande Esperança de nota B. Mas ainda que eu perguntei a essa mulher se este de o seu caso, eu sei que não é. Ela está aqui por minha causa.
" Não, não ", ela responde, puxando uma mecha rebelde de cabelo que cobria seus lábios. " Estou aqui para lhe entregar um convite. "
" Minha caixa de correio é no andar de baixo. Você pode deixar qualquer coisa endereçada a mim com o porteiro. "
" Um convite verbal. "
Ela fica de pé. Mais alta do que eu esperava. E, apesar de ela ser tão preocupantemente magra como parecia como quando estava sentada, não há qualquer fraqueza aparente em seu corpo. Ela mantém suas costas eretas, com os ombros alinhados e seu fino queixo apontado para o teto.
" Eu tenho um compromisso no Centro da cidade ", digo, apesar de estar esticando a mão para a maçaneta a fim de abrir a porta. E ela já está se movendo para perto para também entrar na sala.
" Apenas um momento, professor ", diz. " Prometo não retê-lo muito tempo. "

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