CAPÍTULO II -PISANDO EM OVOS

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Acordei super animada, ao contrário do que minha mãe jamais imaginaria depois de anos e anos
me empurrando cama abaixo para ir à escola. Mas agora eu era independente e tinha que ser
responsável, queria provar para mim mesma que já sabia me cuidar. Fiquei surpresa ao ver que
Michele já se fora. Ela não me pareceu o tipo de menina pontual e disciplinada, mas a gente
pode se enganar. Estranhei o fato da cama dela estar exatamente igual à noite anterior, mas
gostei de saber que ela havia saído sem fazer barulho. Iríamos nos dar bem assim.
  Troquei de roupa, penteei o cabelo e resolvi tomar café na cantina para desenvolver
minha performance social. Ao me dirigir até a porta para sair, a mesma se abriu de repente,
quase batendo no meu rosto e tive que dar um pulo para trás para me salvar. Era Michele, que
entrou correndo e pedindo desculpas, dizendo que iria se atrasar. Pegou a mochila, lavou o rosto,
trocou de roupa e foi catando as coisas, afobada, perguntando se o telefone dela tocara à noite
enquanto ela dormia fora.
  Dormiu fora? Aonde?
  A faculdade era super isolada e os parentes dela também residiam em Petrópolis. Antes
que eu perguntasse alguma coisa, a porta se abriu novamente e entrou outra menina. Era mais
alta do que eu, cabelos lisos, loiros e médios, com uma mecha azul que saía do topo da cabeça e
caía até as pontas. Vestia roupas escuras e coladas, que destacavam bem sua silhueta. Ela nem
percebeu minha presença e se dirigiu à Michele, rindo e gritando:
  — Sua malvada, nunca deixa os melhores pra mim!
  Notei pelo sotaque que ela era do sul. Ao me notar, não se entreteve muito tempo.
Limitou-se a exprimir um esnobe “oi” e voltou sua atenção novamente para Michele. Percebi
que educação não era o seu forte, mas não me incomodei com a pouca atenção que me fora
dispensada. Enquanto as duas riam e fofocavam, eu saí. Ainda teria que tomar o café da manhã
e achar a minha sala.
  O corredor da república agora estava lotado, as pessoas se abraçando e rindo, meninos
batendo na cabeça uns dos outros... Eu conseguia nitidamente destacar os calouros assustados,
tentando caminhar imperceptíveis, longe dos veteranos. Essa também era eu, desejando ser
invisível — apesar de sentir os olhares maliciosos me analisando como se eu fosse uma
mercadoria a ser adquirida. Que patético, pensei.
  Peguei um café expresso na cantina e saí apressada, me sentindo uma executiva
atrasadíssima. Logo achei a minha sala. Quando entrei, havia poucas pessoas, o professor não
estava e dei graças a Deus. Coloquei minhas coisas na mesa e joguei fora o copinho do café,
depois de beber. Fiquei olhando o movimento no corredor imaginando se conseguiria prestar atenção com tanto barulho ao redor. Eu estava ansiosa para me tornar uma estudante em uma
das faculdades mais respeitadas do Brasil. Tantas perguntas a fazer...
  Olhei para a sala para registrar cada momento do meu primeiro e glorioso dia. Talvez eu
ainda viesse a narrar isso em uma das minhas entrevistas como futura reconhecida escritora.
  Os minutos foram se passando e cada vez mais alunos chegavam atrasados. Algum tempo
depois minha ansiedade foi se transformando impaciência. Em seguida, em intolerância. Até
que, quando avisaram que o professor não poderia dar aula naquele dia, me senti invadida por
uma grande decepção. Como? Já no primeiro dia? Que descaso!
  Os alunos que já jogavam sueca no fundo da sala saíram satisfeitíssimos e só tiveram o
trabalho de transferir o jogo para as mesas do refeitório. Frustrada, me encaminhei para sala
onde seria a segunda aula e resolvi “matar o tempo” lendo minha Bíblia de bolso.
  Meus olhos liam, mas minha cabeça estava longe. Pensava no infeliz do professor que
faltara, postergando minha esperada estreia como universitária. Olhava a cada cinco minutos
para o relógio para ver se a próxima aula estava prestes a começar. Após meia hora lendo não
tenho a menor ideia do quê, os alunos começaram a entrar. Escondi minha Bíblia, pois não queria
ser rotulada de “crentona” logo no primeiro dia. Queria que as pessoas me conhecessem como
eu sou, para depois saberem qual é a minha religião. Já tinha sofrido muitos distanciamentos
prematuros por causa desse preconceito religioso, mas eu não me via nem um pouco diferente
das meninas da minha idade, apesar de ter sido criada dentro de uma igreja. Às vezes, isso
preocupava minha mãe, mas eu não queria me tornar a “rainha da pureza e do autocontrole”! Eu
me esforçava muito para agradar meus pais, para ser a menininha perfeita, mas às vezes eu só
queria... ser livre para cometer alguns erros, só para variar. Não que eu não os cometesse
diariamente, mas sabia bem como mantê-los em segredo.
  A primeira aula não foi nada impressionante, todos se apresentavam igualzinho no
segundo grau. Falamos um pouco sobre o leque de opções em relação a nossa carreira, o que não
foi nada animador vindo daquela professora. Ela fez questão de ressaltar todas as dificuldades do
ramo e dizer que, pelas estatísticas, somente dez por cento dos alunos chegariam ao final do
curso. Acabamos a aula mais cedo e fomos dispensados.
  Estava me encaminhando para a terceira aula, ainda meio confusa com tantas salas,
quando finalmente encontrei um banheiro. Entrei, e vi que o seu estado era lastimável. Comecei
a me questionar. Para onde vão nossos impostos?” Percebi que papel higiênico deveria ser artigo
de luxo ali e que, a partir daquele dia, deveria trazer um na bolsa. Havia uma pequena janela, por
onde dava para ver uma floresta ao lado do campus e um movimento de meninas num banco lá
fora chamou minha atenção. Para minha surpresa, reconheci Michele no meio delas. Era óbvio
que estavam matando aula. Estavam rindo, tagarelando e fumando, mas não me parecia ser um
cigarro comum. Começaram a passar o objeto fumegante umas para as outras e, pelo pouco que
conhecia do assunto, deduzi que se tratava de um baseado.
  Só pode ser provação!, pensei. Iria passar os próximos quatro anos num lugar sujo, com
professores descomprometidos, sem papel higiênico e morando com uma viciada? Um ano
inteiro de dedicação ao pré-vestibular para isso? Eu estava seguindo rumo ao completo
desencanto com essas perspectivas.
  E se meus pais viessem me visitar enquanto ela estivesse fumando aquela erva de Satã no
nosso quarto? E se a diretoria do alojamento descobrisse e pensasse que eu também estava nessa?
E se eu fosse presa por porte de drogas?
  Minha cabeça estava a mil, e eu sabia que teria que me adaptar a muitas realidades
imprevistas e indesejáveis. Procurava ter esperança de que viriam dias melhores quando saí do banheiro, irritada, marchando e olhando para o chão. Por causa disso, trombei abruptamente
com alguém, deixando meu fichário, meus horários e meu celular se espatifarem no chão,
espalhando-se em vários ângulos diferentes. Desanimada, suspirei, preparando-me para pedir
desculpas após já ter visto um par de sapatos masculinos no piso diante de mim. Mas, não foi
possível...
  Ao erguer os olhos, me deparei com o ser humano indiscutivelmente mais bonito e mais
maravilhoso que já tinha visto naquela faculdade. Na verdade, na minha cidade também.
Fazendo-lhe totalmente justiça: era o homem mais bonito que eu já vira em toda a minha vida.
Fiquei arrebatada por alguns segundos com aquela desconcertante visão e me confortei em saber
que ali havia pelo menos uma coisa boa de se ver. Afinal, depois de tanto desagrado, aquela visão
era remédio para a minha alma.
  Tratava-se de um rapaz. Ou homem, que devia ter entre 20 e 30 anos, no máximo. Sua
pele branca estava levemente bronzeada, seu cabelo era loiro escuro e meio desalinhado em
torno do rosto. Seus olhos tinham nuances infantis e sedutoras ao mesmo tempo. Não pude deixar
de notar as ruguinhas leves que surgiam nos cantos de seus olhos quando ele sorria e que lhe
atribuíam um charme viril, todo especial. Seu maxilar era quadrado e emolduravam um sorriso
caloroso e perfeito, aberto para mim. Ele era um pouco mais alto do que eu, o que me fazia
erguer a cabeça para apreciá-lo. O céu deveria ser mais ou menos assim...
  — Quanta pressa? Está tudo bem? — indagou a voz que, com certeza, pelo tom e firmeza
estava mais perto dos 30. Percebi também que não parecia, em nada, uma voz tipo gay .
  Minha inacreditável resposta foi:
  — Ahn?
  Ele uniu as sobrancelhas, sorrindo, e repetiu a pergunta movendo os lábios pausadamente
como se eu fosse uma estrangeira:
   — Você-está-bem?
  Saí do meu “momento mula” e me abaixei depressa, embaraçada para pegar minhas
coisas enquanto ele ajudava. Disparei a tagarelar, olhando para o chão.
   — Sim, sim, só estou meio... perdida. Meu nome é Angelina Hermann e hoje é meu
primeiro dia. Estava procurando a sala enquanto passava pelo banheiro. Aí entrei e... — contive o
ímpeto de narrar o resto da deprimente história, dizendo a ele que não consegui fazer minhas
necessidades porque não tinha papel e ainda descobri que minha abençoada colega de quarto
gostava de dar um tapinha de vez em quando.
  — Qual sala está procurando? — perguntou ele se levantando.
  — 23 A — respondi.
  — Vem comigo, estou indo pra lá, é depois do laboratório.
Ele foi andando com meu fichário e meu horário na mão. Resolvi não pegar de volta para
garantir a companhia até a sala de aula. Para tirar a má impressão depois do meu “Ahn” idiota
como primeiro contato, resolvi puxar assunto.
  — Não acredito que os professores daqui sejam tão descomprometidos. No primeiro dia
de aula um professor não veio, a segunda nos liberou 30 minutos mais cedo — ele riu. — Cheguei
com tanta empolgação, mas já vi que terei motivo para me juntar àqueles que falam mal de
funcionários públicos. — Disse isso para parecer séria e politizada e não uma caloura perdida do
interior. — Isso é um desrespeito com nossos impostos, que pagam os seus salários.
— É só seu primeiro dia, realmente alguns são assim, mas não são todos...
— Bem, vamos ver o que me espera agora, tomara que não seja mais um idiota que
queira que todo mundo se apresente de novo. Detesto isso: resumir sua vida e quem você é em
nome, idade e endereço... Enfim, vamos ver... — disse revirando os olhos, fazendo charminho. Chegamos à sala e como o meu pequeno incidente tinha me atrasado, para minha
surpresa todos já estavam sentados, aguardando. O desconhecido maravilhoso que me
acompanhou me entregou o fichário na porta da sala e eu o peguei, tristonha. Não queria ter que
me despedir tão rápido, nem havia perguntado seu nome, de onde era, onde estudava... Teria de
aguardar cinquenta minutos para, com sorte, trombar com ele de novo pelos corredores da
faculdade. Pensei em fazer mais uma horinha no corredor, já que o professor ainda não havia
chegado. Assim, examinaria em que sala ele iria entrar, mas achei que iria dar muita bandeira.
Resumi minha despedida num informal “valeu” e entrei na sala sem olhar para trás. Comecei a
constatar como eu era tola por não saber prorrogar uma conversa informal. Como seria escritora
com aquela imaginação tacanha?
E se ele não me reconhecer mais depois desse momento? E se não me cumprimentar daqui
pra frente? E se nunca mais tivermos um assunto em comum? Ele provavelmente era de um
período bem acima do meu, deveria estar quase se formando. Logo presumi que não andaria
com uma caloura. Droga! Por que perdi tempo falando mal desses malditos professores? Na
melhor das possibilidades, eu receberia dele um desinteressado “oi”, em um possível encontro
aleatório pelo campus.
Sentei na última cadeira vaga da sala, arrumei meu material na mesa e quando tomei
ciência da situação à minha frente, fiquei branca! Lá estava ele: na mesa do professor. Mas o
quê? Como? Não é possível!
Minha cabeça começou a dar um nó. Inegavelmente, eu sempre fui propensa a escolher
mal os assuntos para iniciar uma conversa, mas dessa vez tinha me superado. Já sei, é trote!
Pensei, tentando me confortar. Ele deve ser o representante do último período que veio armar
uma pra gente. Torci para que isso fosse verdade, pois depois do meu sofrível discurso político-
idiota sobre professores, sendo ele também professor, com certeza eu já estaria sumariamente
reprovada nessa matéria. Minha suspeita desesperadora se confirmou depois da sua apresentação
formal como mestre.
— Olá turma, meu nome é Alderico Schmitz e sou o professor de Linguística 1.
Não sabia onde enfiar a minha cara, minha tensão ficou óbvia através dos meus olhos
alarmados. Após os primeiros minutos exibindo “cara de paisagem”, me recuperei parcialmente
e resolvi prestar atenção em cada palavra, com uma expressão incrivelmente interessada. Evitei
olhar nos olhos dele cada vez que ele virava na minha direção. De fato, fiquei impressionada
com sua eloquência e carisma, ele prendia facilmente a atenção de todos, especialmente das
mulheres, que eram maioria na turma.
Ao término da aula, após anotar algumas indicações bibliográficas, fiquei em dúvida se:
1 — Saía disfarçadamente;
2 — Dizia: “Tchau, até a próxima, me desculpe”;
3— Simplesmente saía sem dizer nada.
Num estalo criativo tive a brilhante ideia de sair fingindo que estava falando no celular.
Assim, não precisaria me despedir. Enquanto eu atravessava o corredor de cadeiras, observei
que ele me acompanhava com os olhos, rindo e ainda sentado na mesa dos professores. Estava
cercado por três entusiasmadas alunas. Ele gesticulou com as mãos, fazendo sinal para eu me
aproximar. Pra que eu fui olhar? Caminhei na direção dele, ainda conversando com minha
amiga imaginária, enquanto suas mais novas fãs se despediam. Após fazerem milhões de
perguntas desnecessárias, elas finalmente deram sinal de que iriam embora. Cheguei perto e ele
se levantou sorrindo, provavelmente divertindo-se com a minha gafe. Enquanto despedia-se
delas, ele segurou de leve o meu ombro, como se estivesse me impedindo de fugir. Fiquei meio desorientada com a sua proximidade, observando os torneados músculos do seu braço — não
músculos de um halterofilista bombado, porém firmes e bem presentes.
Enquanto eu fazia minha talentosa atuação ao telefone e as meninas já estavam nos
deixando, o imprevisível aconteceu: meu celular idiota tocou de verdade, quer dizer gritou bem
na minha orelha. Arfante, olhei para o visor: era minha mãe, hrrhrrhrr... Atendi correndo o
telefone:
— Ah, oi, caiu a ligação... — improvisei.
— O quê? — interpelou ela, sem entender.
— Daqui a pouco te ligo, beijo. — Atabalhoada, desliguei na cara dela.
Olhei para ele segura, como se nada tivesse acontecido. Acho que vou fazer teatro.
Ficamos parados uns cinco segundos nos olhando num silêncio mortal.
— Será que essa aula desfez sua má impressão sobre a classe de mestres? — sondou ele
rindo e voltando-se para a mesa para pegar um papel.
— Desculpe pelo que eu disse antes, só estava... chateada com os primeiros incidentes
aqui. Também — defendi —, como iria imaginar que existia um professor tão... ( lindo)... jovem
como você por aqui?
— É o segundo ano em que dou aula neste curso, me formei aqui mesmo, em francês.
— Você explica como se fizesse isso há anos... Foi muito boa a sua aula — argumentei,
tentando recuperar uma imagem simpática.
— Então, não perca a próxima. —Dito isso, ele estendeu a mão e me entregou o meu
horário, que tinha ficado com ele. Queria acreditar que tinha sido de propósito. Até parece...
Agradeci e me despedi.
Quando cheguei no quarto, Michele já estava lá e pelo número de pacotes abertos e
panelas sujas já tinha comido um bocado. Pensei tratar-se da famosa “larica”[1]. Ela me ofertou
um macarrão que estava pronto na panela enquanto teclava no seu laptop.
— E aí? Como foi o seu primeiro dia? — indagou ela, com uma felicidade estranha no
olhar.
— Legal — eu disse. — Só tive duas aulas.
— De quê?
— De apresentação de pessoas — brinquei — e Linguística 1.
— Com aquele gato do Rico! Ele é um ótimo colírio para se começar o dia... — arfou ela.
— É, a aula foi legalzinha. — desdenhei, tentando aparentar indiferença.
— Escuta Angelina, vai ter uma... reuniãozinha aqui em casa hoje à noite com as minhas
amigas. Sabe como é, a gente não se vê há um mês, temos muito o que fofocar, devemos jogar
cartas e tal... Você não se importa, não é?
— Bem, desde que elas não saiam muito tarde, amanhã temos aula bem cedo, certo?
— Pode ficar tranquila. — garantiu.
Que dia! Resolvi tomar um banho e comer alguma coisa. Preparei humildemente um
misto quente de frigideira, que ficou meio queimado — o que me fez desejar ardentemente a
comida da minha mãe.
Pela primeira vez no dia a saudade de casa bateu forte e resolvi ir até a pequena lan house
que havia visto lá em baixo para enviar algumas mensagens para o meu pessoal.
Quase tive uma parada cardíaca ao descer as escadas e vê-lo sentado no sofá com dois
outros garotos, vendo um jogo de futebol. Era ele mesmo: Alderico ou “Rico”, como dissera
Michele. Estava bem mais informal, com uma bermuda verde, uma camiseta branca e chinelos.
Mesmo assim, um espetáculo! Ao sair do transe pensei: Droga! Eu tinha descido com uma calça larga, uma blusa que
ganhei num comício, chinelos e cabelo molhado penteado para trás. Parecia que estava em casa
numa sessão de cinema com a minha mãe. Pensei em retornar rapidamente escada acima para
me trocar, mas não me decidi em tempo suficiente. Ele me avistou e saudou:
— Angelina? Não sabia que você também morava aqui.
Uma onda de calor e satisfação subiu pelo meu corpo ao ouvir a palavra “também”
ecoando na frase. Abri um sorriso dissimulado e caminhei em sua direção.
— Bem, cheguei essa semana, na verdade ontem.
— Está em que quarto?
— No terceiro à direita do segundo andar.
— Com a Michele? Coitadinha, vai precisar de um refúgio, naquele quarto é um entra e
sai...
Balancei a cabeça concordando com um sorriso afetado.
— Onde estava indo?
— Internet — falei, apontando para a saleta ao lado.
— Fica no computador da direita, é mais rápido — ele sugeriu com aquele sorriso
arrebatador e o braço estendido no sofá.
Agradeci a dica e fui andando, arrependida de não ter dito vim ver televisão e ficar mais
tempo por ali, conversando com ele. Mas foi melhor assim. No final das contas, o que eu estava
pensando? Ele era meu... professor e com certeza não era cristão nem nada. Não que eu me
importasse com isso, mas meu pai...
E também era... mais velho, apesar disso também não me incomodar tanto. Continuei
repetindo as inadequações dessa fantasia insana para mim mesma a fim de convencer-me desse
impropério. Eu precisava de foco!
No meu último — e único — relacionamento, eu tinha 16 anos quando namorávamos, ele
morava em São Paulo e só vinha duas vezes por ano a Petrópolis para visitar os avós. Aliás, era
por isso que meu pai o aprovava tanto: um perfeito e inofensivo relacionamento à distância. Era
melhor eu me distrair mesmo com outra coisa.
Conferi a caixa de mensagens e fiquei feliz de ver que tinha recebido uma página inteira
de e-mails de familiares e amigos. Uns me desejando boa sorte nessa nova fase, outros curiosos
sobre como estavam indo as coisas nesse novo começo. Mas a mensagem mais preciosa foi a de
Natasha. Como já sentia falta de tagarelar horas e horas com essa minha amiga do peito! Ela me
mandou um e-mail enorme contando tudo que havia acontecido desde que saí de lá — como se
isso tivesse acontecido há anos —, me fez mil perguntas sobre tudo e anunciou que, finalmente,
iria passar seis meses fazendo intercâmbio na Inglaterra, junto com seu irmão, para aprimorar o
inglês. Dante aproveitaria para fazer uns cursos de música que há tempos desejava. Ele tinha
uma banda Gospel e seu sonho era ganhar a vida como músico. Suas canções eram muito boas e
já tocavam bastante na rádio local.
Fui resgatada de minhas lembranças por um barulho de vassoura. Olhei para trás e vi uma
senhora gorda, morena e baixinha. Estava com um pano enrolado na cabeça, um avental branco
e um vestido florido azul escuro. Tinha lábios grossos, bochechas proeminentes e um olhar
grande, negro e curioso. Quando percebeu que havia me interrompido, abriu logo um sorriso
arrependido e se desculpou:
— Desculpa, filhinha, nem vi você aí. Estava tão escuro aqui que entrei distraída. Já passa
das nove horas e eu não posso sair sem deixar tudo limpo para amanhã.
— Imagina! — exclamei, sinceramente agradecida. Agora tinha um motivo real para
retornar à sala. Quer dizer, para o meu quarto. É, vou direto para o meu quarto... eu acho. — Meu nome é Raimunda... — prolongou-se ela. — Trabalho aqui, na cozinha e na faxina
das áreas comuns a todos.
— Ah sim! Meu pai me falou de uma taxa que os estudantes racham para a manutenção
da república. Prazer, sou Angelina e cheguei esta semana, já estava de saída mesmo, boa noite.
— Apressada, me despedi.
— Seja bem vinda querida e que Deus abençoe sua jornada.
Suas palavras me entretiveram por um momento. Fiquei ali parada, mirando-a
complacentemente. Era a primeira vez que alguém me dava boas vindas desde que chegara e
me sentindo estranhamente simpatizada por aquela mulher, agradeci e saí.
Quando voltei para a sala, ele ainda estava lá, só havia um garoto em sua companhia
agora. Ao passar, notei que ele me observou enquanto conversava com o menino.
Que olhos lindos... Melhor eu ir dormir, concluí.
Quando cheguei perto da porta do quarto, pelo barulho percebi que ainda havia meninas lá
dentro. Resolvi entrar assim mesmo para ver se elas se tocavam que já estava na hora de sair.
Que péssima surpresa eu tive quando entrei e vi aquela fumaça e aquele cheiro horroroso no
quarto! Fiquei parada, administrando na minha mente diante daquele cenário de pesadelo. Pela
minha expressão, Michele percebeu que eu não estava muito satisfeita com a cena, pois pelo
visto eram vários “tapinhas” por dia.
— Elas já estavam de saída. — antecipou Michele, amigável.
— Deixa só a gente queimar esse restinho, tá? — disse a loura de mecha azul, impassível
novamente.
— Volto em cinco minutos! — Limitei-me a dizer, batendo a porta.
Caminhei pelo corredor e tamborilei meus dedos na porta para dar tempo de me acalmar.
Eu decididamente não iria conviver com aquilo. Drogas não combinavam com os meus
princípios. Ali deveria ser o meu refúgio, meu lugar de descanso, de estudo. Comecei a pensar na
hipótese de procurar outro quarto vago por ali. Felizmente, meu humor foi instantaneamente
restaurado quando vi Rico, sozinho, subindo as escadas.
Meu aborrecimento tornou-se irrisório na sua presença, ele morava mesmo ali. Curioso,
seguiu na minha direção e perguntou, brincando:
— Fazendo a ronda?
— Esperando meu quarto esvaziar — bufei, sem paciência.
— Por que não pede a elas para se retirarem?
— Já pedi, mas estão muito ocupadas queimando um... — não terminei a frase,
aborrecida.
— Não acredito! Quantas vezes já falei com a Michele... Eu vou lá — proclamou ele,
marchando para a porta.
— Não! — relutei. Não queria passar por fofoqueira. — Agora não. Ela vai pensar que fui
atrás de alguém e não quero criar um mal-estar entre nós duas, depois me entendo com ela.
— Faça isso, então — insistiu ele. — Senão, eu faço. Quer que eu espere aqui com você?
Claaaaaaaaaaaaro!
— Não, tudo bem, elas já vão sair. Então... onde é o seu quarto?
— Na verdade, não moro aqui (momento de decepção intensa), mas meu apartamento é
meio longe do campus e quando vou ministrar aula muito cedo no dia seguinte os meninos me
convidam pra ficar. Pra falar a verdade, tenho passado mais tempo aqui do que em casa.
Ótima notícia. Nesse momento a porta do quarto se abriu e com isso fomos agredidos por
aquele cheiro odioso, que me deixou nauseada. Michele veio até a porta conversando com as
meninas e recebeu dele um olhar de reprovação. Após me desejar boa noite, ele se dirigiu para dois quartos depois do meu, deixando aquele imenso corredor desprovido novamente do seu
charme.
Michele começou a recolher os cinzeiros, cantarolando, enquanto eu organizava as
minhas coisas, muda. Depois de cinco minutos sendo completamente ignorada, ela resolveu
reatar relações.
— Saudades de casa?
— Com certeza! — murmurei, arrumando a cama.
— Algum problema? — investigou a dissimulada.
— Isso é comum? — reagi.
— O quê?
— Vocês, aqui, se drogando no nosso quarto?
—Que palavra pesada Angelina... Se drogando? Bem inerente a quem chegou do interior.
É melhor você se livrar logo desses valores arcaicos. Você sabia que a maconha é liberada em
muitos lugares? É um tipo de... calmante, muitas pessoas usam só pra tirar o estresse do dia, sabia
disso?
Estresse do dia.... Ela não fez nada além de dormir fora, bagunçar o quarto, matar aula na
floresta e fumar o dia todo. Que hipocrisia! Será que nunca ouviu falar de yoga?
— Pois é — argumentei, com uma cara ofendida —, mas gostaria de pedir que não
fizesse isso aqui. Aliás, gostaria de pedir que não fizesse isso, pela sua família e por você, mas já
que não nos conhecemos o suficiente para este tipo de intromissão da minha parte, ao menos em
respeito a mim, faça isso em outro lugar, por favor.
— É por causa dessa coisa de igreja, não é? — inferiu ela, revirando os olhos. — Minha
mãe sempre tagarelou diversas vezes nos meus ouvidos sobre tudo que ela ouvia lá, apesar de eu
achar que ela mesma não aprendeu nada, só decorou o que ouviu. Sei que logo, logo você vai
perceber quanto exagero aprendeu. A vida pode ser divertida, sabia? Deus é alegria! — disse ela.
— Mas sem drama, tá? Não vamos mais vir aqui, a não ser que você queira. Você precisa fazer
novas amizades e abrir a cabeça, menina... Se vai ficar aqui por quatro anos é bom se enturmar,
estereótipos moralistas não serão muito úteis por aqui.
Achei tudo aquilo um absurdo! Não me considerava arcaica nem... moralista. Mas
agradeci por ela concordar em não fazer mais aquilo em nosso domicílio partilhado. Agora só
queria dormir e relembrar meus velhos e saudáveis amigos.

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