De pé sobre a mesa eu observo cansada um almoço em família tranquilo e nostálgico. Ninguém me vê e os copos, pratos e talheres sequer resvalam no meu corpo ou no meu manto negro drapejado pela fraca brisa que adentra no recinto. Aflita, rodopio a minha foice com velocidade e destreza ao releu.
Eles sorriem, trocam amabilidades, novidades e fofocas costumeiras das famílias comuns. Não que eu saiba muito bem o que seja isso, embora veja meus pais aqui e acolá agindo no tecer do tempo. Meu pai esteve em todas as contendas do mundo, presenciou paus e pedras se tornarem metralhadoras. E dardos envenenados e catapultas evoluírem para as bombas atômicas. Aquele dia foi bem...trabalhoso. Ele veio até mim e preparou um piquenique no alto de um arranha-céu enquanto o cogumelo de fumaça florescia nos céus do Japão. Comemos sushi rapidamente, pois o trabalho nos chamava. Desejou-me um bom dia e se foi também. Ouvi que ele estava se divertindo no Cairo alguns dias atrás.
Minha mãe é mais problemática por assim dizer. Faz o meu serviço cotidiano parecer com uma brincadeira. Acarreta-me mais confusão e corpos do que o meu pai em décadas. Apesar de que por proporção ela trabalha menos e ceife menor quantidade. Sua fúria desperta vulcões e avalanches, seu grito faz tremer a terra e abala as placas tectônicas. Nas cristas dos tsunamis você pode ver a sua face se souber olhar. Ao seu comando casas e carros são levados à um tour pelos ares, pelo simples prazer de fazer por fazer. Ela é a potestade do mundo e vive para causar.
A família feliz e normal continua seu almoço, indiferentes a foice ligada à um mastro de quase três metros que rodopia sobre suas cabeças. Eu gosto de fazer esses movimentos, me distrai durante os momentos de nada-pra-fazer. Meu pai franziria o cenho diante de minha conduta nada profissional. Afinal eu sou a morte, deveria passar uma imagem medonha e séria. Não tão abstrata do que faço. Tão tediosa. Ririam de mim se me vissem. Ou não, quem sabe, as pessoas são tão medrosas com o sobrenatural. O mais provável seria eles me encharcarem com água benta e tentarem me afastar com crucifixos. Faz muito tempo que caminho entre os ignorantes, apática eu finjo não os ver, assim como eles não podem me enxergar. Melhor assim, ambos ficamos agradecidos.
O que ocorre depois dos pratos chegarem me surpreende um pouco. Um pequeno bolo de glace, com três velinhas correspondentes ao número 101. As pessoas estão de faces coradas, provavelmente é porque estão felizes demais, não vi uma gota de álcool em nada do que eles ingeriram. O bolo é deposto com cuidado em uma atitude quase reverencial à frente da velhinha de olhos pequenos. Seus curtos e rachados lábios exibem um sorriso fraco e sem qualquer premeditação que vejo em abundância nos tolos e falsos. Ela está feliz e suas batidas aceleram muito. Três vezes a velocidade normal. Calma senhora Helena, disse jeito você vai acabar batendo as botas antes de experimentar o primeiro pedaço. Sou generosa e decidi que vou te dar tempo para provar.
Todos cantam alegres em torno dela, batem palmas. Eu me junto ao coro de " Parabéns para você " embora ninguém possa notar minha bela voz de soprano. Vou até o Hall de entrada e me divirto com os olhos receosos do São Bernardo que me seguem pela casa. Acho cães divertidos, quando pequena pedi um para meus pais e eles me deixaram de castigo. Houve inúmeros casos de incidentes estranhos durante esse tempo. Pessoas caiam de muito alto e permaneciam conscientes. Levavam tiros, facadas, não se afogavam. Não morriam. A idéia não deu muito certo e me libertaram do castigo. Ganhei um Buldogue do cemitérios de cães de uma pequena cidade. Sua forma espectral me seguia aonde quer que eu fosse. Até que ele se encrencou com um gato -espírito e nunca mais o vi.
Agora começou a seção de fotos, e tapinhas nas costas. Reviro os olhos, estou mais do que impaciente. Meus pais teriam resolvido a situação muito mais depressa e sem burocracia. Mas não! Eu sou a certinha da história e tenho que fazer as coisas nas regras. Mais alguns minutos e estarei longe daqui. Uma mulher na faixa dos 50 anos e nariz aquilino se aproxima de Helena e eu enfim abro um sorriso. Ela tem um pedaço do maldito bolo nas mãos. Finalmente alguém que age aqui. Deveria agradecer aquela mulher de alguma forma. Chego mais perto da dita cuja,sondando-a,e vejo um ponto de luz negra emanando de um dos seus seios flácidos. A morte virá daí. Um câncer de mama, eu concluo. Hmm,repouso minhas mãos enluvadas sobre a futura doença e segundos depois a luz negra foi dissipada. Isso e o que você ganha por facilitar meu trabalho de hoje mulher.
Aquele dentes falsos se fecham numa mordida um tanto desajeitada para um pedacinho de nada que era o que ela estava mastigando. Lambuza-se toda de glace a pobrezinha da Helena, mas limpar sua boca ficará por conta dos seus parentes, a hora chegou. Toco com a foice na sua testa devagar e seus pequenos olhos se arregalam de espanto quando ela me vê ali toda de negro. Eu sorrio e ela grita, dou de ombros, fazer o que? Não dá para agradar a todos. Desço a lâmina de minha alabarda sobre seu corpo separando sua alma do fragil invólucro de carne que a sustentou por tanto tempo.
Os cordéis que a sustentavam não existem mais e seu corpo vazio cai duro no chão, ainda segurando o pedaço de bolo. Sua família corre e se assusta. A levantam, sacodem-na. Alguns gritam por ajuda, outros choram.- o que vocês pensaram? eu pergunto a ninguém em especial enquanto enfio os dedos no bolo - que ela iria viver mais 101 anos?
Estava razoável, concluo lambendo meu polegar. Saio pela porta da frente cansada de tanto choro e lamentos, isso sempre me irrita. Na rua da senhora Helena há muitos cães e eles me seguem com os olhos enquanto a percorro, mas não tentam se aproximar e nem proferem um mísero latido. Minha única platéia é muda.
No gramado de uma dessas casas uma grande criatura cinza de asas desproporcionais ao seu tamanho está sentada fitando os sons de conflito dentro da residência.
- Ei você - eu a chamo e a coisa se vira pra mim com seu rosto oval de grandes olhos vermelhos sem íris. - Xô, vaza!
Eu deixo minha foice cair no asfalto e vou arrastando-a até sua direção produzindo em sua trajetória milhares de pequenas fagulhas. A criatura se assusta como esperado e parte veloz para as alturas me olhando feio. Se bem que é difícil saber com aquela coisa, sendo tão feia podia estar tentando flertar comigo e eu não saberia. Dentro da casa a contenda cessa. Eles não sabem bem o porquê de terem começado a discutir, ou a causa da briga ter evaporado. Não sabem que existem seres além de sua compreensão que rodeiam os humanos como vagalumes procurando pontos luminosos dos sentimentos que são exalados. Não sabem como são fáceis de manipular. Tão fracos, tão arrogantes.
Não é a toa que meus pais não toleram vocês - eu pensei em voz alta.
O crepúsculo se põe sobre a terra, trazendo como sempre uma leva de criaturas espirituais para perpetuarem o seu querer. Avisto ao longe uma grande quantidade de Discórdias da mesma espécie daquela que expulsei. Eles querem briga,não gostam de ser contrariados, e na verdade nem deveriam ser. Há leis acerca disso, e eu desrespeito um bocado delas por dia.
Levanto minha foice em.sua direção. Que venham. Tem o suficiente para todos seus putos.
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Death
ActionUma ceifadora entediada é uma comédia ou perigo para as almas que busca? Há somente ela entre o caminho que tem que cumprir? Descubra nesse conto.