Capítulo XVI

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Um incidente agora me ocorre, não muito concertado com o seguimento da história, mas a propósito vindo para demonstrar uma face da índole do ex~corregedor de Viseu, já então exonerado do cargo.

Sabido é que Manuel Botelho, o primogênito. voltando a freqüentar matemáticas em Coimbra, fugira dali para Espanha com uma dama desleal a seu marido, estudante açoreano que cursava medicina.

Um ano demorara na Corunha Manuel Botelho com a fugitiva. alimentando-se dos recursos que sua mãe, extremosa por ele, lhe remetia, vendendo a pouco e pouco as suas jóias, e privando as filhas dos adornos próprios dos anos e da qualidade.

Secaram-se estas fontes, e não restavam outras. D. Rita disse afinal ao filho que deixara de socorrer Simão por não ter meios; e agora das escassas economias que fazia nada podia enviar-lhe porque estava em obrigação de pagar os alimentos de Simão à pessoa que por compaixão lhos dera em Viseu, e lhos estava dando no Porto. Ajuntava ela, para consolação do filho, que viesse ele para Vila-Real, e trouxesse consigo a infeliz senhora; que fosse ele para casa, e a deixasse a ela numa estalagem até se lhe arranjar habitação; que o ensejo era oportuno por estar na quinta de Montezelos o pai, quase divorciado da família.

Voltou pelo Minho Manuel Botelho, e chegou com a dama ao Porto, quinze dias depois que Simão entrara no cárcere. 

Já noutro ponto deixamos dito que nunca os dois irmãos se deram, nem estimaram; mas o infortúnio de Simão remia as culpas do gênio fatal que o orfanara de pai e mãe, e só da irmã Rita lhe deixara uma lembrança saudosa.

Foi Manuel à cadeia, e, abrindo os braços ao irmão. teve um glacial acolhimento.

Perguntou-lhe Manuel a história do seu desastre,

- Consta do processo - respondeu Simão.

- E tem o mano esperanças de liberdade? - replicou Manuel.

- Não penso nisso.

- Eu pouco posso oferecer-lhe, porque vou para casa forçado pela falta de recursos; mas, se precisa de roupa, repartirei consigo da minha.

- Não preciso nada, Esmolas só as recebo daquela mulher.

Já Manuel tinha reparado em Mariana, e da beleza da moça inferira conclusões para formar falsos juízos.

- E quem é esta menina? - tornou Manuel.

- É um anjo... Não lhe sei dizer mais nada.

Mariana sorriu-se, e disse:

- Sou uma criada do senhor Simão e de vossa senhoria.

- E cá do Porto?

- Nã0, meu senhor, seu dos arrabaldes de Viseu.

- E tem feito sempre companhia a meu mano?

Simão atalhou assim à resposta balbuciante de Mariana:

- A sua curiosidade incomoda-me, mano Manuel,

- Cuidei que não era ofensiva - replicou o outro, tomando o chapéu. - Quer alguma coisa para a mãe?

- Nada.

Estando Manuel Botelho, na tarde desse dia, fechando as malas para seguir jornada para Vila-Real, foi visitado pelo desembargador Mourão Mosqueira e pelo corregedor do crime.

- Devemos à espionagem da polícia - disse o corregedor - a novidade de estar nesta estalagem um filho do meu antigo amigo, condiscípulo e colega Domingos Correia Botelho. Aqui vimos dar-lhe um abraço e oferecer o nosso préstimo. Esta senhora é sua esposa? - continuou o magistrado, reparando na açoreana.

Amor de Perdição - Camilo Castelo BrancoOnde histórias criam vida. Descubra agora