Capítulo XVIII

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Mariana, decorridos dias, foi a Viseu recolher a herança paterna Em proporção com o seu nascimento, bem dotada a deixara o laborioso ferrador. Afora os campos, cujo rendimento bastaria para a sustentação dela, Mariana levantou a laje conhecida da lareira e achou os quatrocentos mil réis com que João da Cruz contava para alimentar as regalias de sua decrepitude inerte. Vendeu Mariana as terras, e deixou a casa a sua tia, que nascera nela, e onde seu pai casara.

Liquidada a herança, tornou para o Porto, e depositou o seu cabedal nas mãos de Simão Botelho, dizendo que receava ser roubada na casinha em que vivia, fronteira à Relação, na Rua de S. Bento.

- Por que vendeu as suas terras, Mariana? - perguntou o preso.

- Vendi-as, porque não faço tenção de lá voltar.

- Não faz?... Para onde há de ir, Mariana, indo eu degredado? Fica no Porto?

- Não, senhor, não fico - balbuciou ela como admirada desta pergunta, à qual o seu coração julgava ter respondido de muito.

- Pois não?!

- Vou para o degredo, se vossa senhoria me quiser na sua companhia.

Fingindo-se surpreendido, Simão seria ridículo aos seus próprios olhos.

- Esperava essa resposta, Mariana, e sabia que não me dava outra. Mas sabe o que é o degredo, minha amiga?

- Tenho ouvido dizer muitas vezes o que é, senhor Simão... É uma terra mais quente que a nossa; mas também há lá pão, e vive-se...

- E morre-se abrasado ao sol doentio daquele céu morre-se de saudades da pátria, morre-se muitas vezes dos maus tratos dos governadores das galés, que têm um condenado na conta de fera.

- Não há de ser tanto assim. Eu tenho perguntado muito por isso à mulher dum preso, que cumpriu dez anos de sentença na Índia, e viveu muito bem em uma terra chamada Solor, onde teve uma tenda; e, se não fossem as saudades, diz ela que não vinha, porque lhe corria melhor por lá a vida que por cá. Eu, se for por vontade do Senhor Simão, vou pôr uma lojinha também. Verá como eu amanho a vida. Afeita ao calor estou eu; vossa senhoria não está; mas não há de ter precisão, se Deus quiser, de andar ao tempo.

- E suponha, Mariana, que eu morro apenas chegar ao degredo?

- Não falemos nisso, senhor Simão...

- Falemos, minha amiga, porque eu hei de sentir à hora da morte, a pesar-me na alma, a responsabilidade do seu destino... Seu eu morrer?

- Se o senhor morrer, eu saberei morrer também.

- Ninguém morre quando quer, Mariana...

- Oh! se morre!... E vive também quando quer... Não mo disse já a senhora D. Teresa?

- Que lhe disse ela?

- Que estava a passar quando vossa senhoria chegou ao Porto, e que a sua chegada lhe dera vida. Pois há muita gente assim, senhor Simão... E mais a fidalga é fraquinha, e eu sou mulher do campo, vezada a todos os trabalhos; e, se fosse preciso meter uma lanceta no braço e deixar correr o sangue até morrer, fazia-o como quem o diz.

- Ouça-me, Mariana que espera de mim?

- Que hei de eu esperar!... Por que me diz isso o senhor Simão?

- Os sacrifícios que Mariana tem feito e quer fazer por mim só podiam ter uma paga, embora mos não faça esperando recompensa. Abre-me o seu coração, Mariana?

- Que quer que eu lhe diga?

- Conhece a minha vida tão bem como eu, não é verdade?

- Conheço. E que tem isso?

Amor de Perdição - Camilo Castelo BrancoOnde histórias criam vida. Descubra agora