Parte um

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Não fui ao enterro de Alice.
Eu estava grávida na época, enlouquecida e desesperada de dor. Mas não era por Alice que sofria. Não, eu a odiava naquele momento e estava satisfeita com a morte dela. Era Alice quem tinha arruinado a minha vida, tomado a melhor coisa que eu já tivera, para estilhaçá-la irreparavelmente em um milhão de pedaços. Eu não chorava por ela, mas por causa dela.
No entanto, agora, quatro anos depois e infinitamente mais feliz, enfim acomodada numa vida confortável e rotineira com minha filha Sarah (minha doce e muito séria Sarah), de vez em quando sinto que, afinal de contas, eu deveria ter ido ao enterro de Alice.
O problema é que ás vezes eu a vejo - no supermercado, no portão de entrada do jardim de infância de Sarah, no clube ao qual ocasionalmente eu e Sarah vamos para uma refeição barata. Com o canto do olho, capturo vislumbres do cabelo brilhante, cor de milho, de Alice, do corpo de modelo, das roupas chamativas, e paro para olhar, com o coração aos pulos. Levo apenas um instante para lembrar que ela está morta e enterrada, que não pode ser ela, mas tenho de me forçar a chegar mais perto, a me certificar de que seu fantasma não está me assombrando. De perto, estas mulheres de vez em quando se parecem, se bem que nunca, nunca são tão bonitas quanto Alice. O mais comum, porém, é que elas tenham qualquer semelhança com ela. Aliviada, afasto-me e retomo o que estava fazendo antes, mas todo o
calor terá se esvaído do meu rosto, de meus lábios; as pontas de meus dedos estarão formigando desagradavelmente, devido à adrenalina. Sempre é a ruína de meu dia.
Eu deveria ter ido ao enterro. Não teria precisado chorar nem fingir desespero. Poderia ter rido amargamente ou cuspido na cova. Quem se importaria? Se eu ao menos tivesse visto baixarem o caixão à sepultura, jogarem terra no tumulo, teria mais certeza de que ela realmente está morta e enterrada.
Eu saberia, no meu íntimo, que Alice desapareceu para sempre.1
- Você que ir? - Alice Parrie olha para baixo, sorrindo. É hora do almoço e estou sentada sob uma árvore, sozinha, absorta em um livro.
- Perdão - levanto a cabeça, a mão protegendo os olhos. - Ir aonde? Alice me entrega uma folha de papel.
Eu a pego e leio. É uma cópia vistosamente colorida de um convite para a festa de aniversário de 18 anos dela. Venha você e venham todos! Tragam seus amigos!, está escrito. Champanhe de graça! Comida de graça! Só uma pessoa tão popular e autoconfiante como Alice distribuiria um convite assim; outra mais comum teria a impressão de estar mendigando convidados. Por que eu?, pergunto-me. Sei quem é Alice, todo mundo sabe quem ela é, mas nunca tínhamos nos falado. É uma dessas meninas bonitas, populares, inesquecíveis.
Dobro o convite ao meio e inclino a cabeça.
- Vou tentar. Parece que vai ser divertido - minto.
Alice me olha por alguns segundos. Depois dá um suspiro e se deixa cair abruptamente junto de mim, tão perto, que apóia um joelho pesadamente contra o meu.
- Você não vai - diz, sorrindo.
Sinto minhas bochechas corarem. Embora toda a minha vida às vezes pareça uma fachada, uma caixa cheia de segredos, não sou boa em mentir. Baixo os olhos para o meu colo.
- Provavelmente não.
- Mas eu quero que você vá, Katherine - diz ela. - Isso realmente significa muito para mim.
Estou surpresa até mesmo de Alice saber meu nome, mas é ainda mais surpreendente - na verdade, quase inacreditável - que queira que eu vá a sua festa. Sou praticamente desconhecida no colégio Drummond e não tenho amigos. Vou e venho em silêncio, sozinha, e cuido de meus estudos. Tento evitar chamar a atenção. Sou uma aluna nova razoável, mas minhas notas não são excepcionais. Não pratico nenhum esporte, não me associei a clube algum. E, embora saiba que não posso fazer isso para sempre - viver minhavida inteira como se fosse uma sombra -, por enquanto isso me convém. Estou me escondendo, sei disso, estou sendo covarde, mas neste exato momento preciso ser invisível, ser o tipo de pessoa que não desperta nenhuma curiosidade. De modo que eles nunca precisem descobrir quem eu realmente sou - nem o que aconteceu em Melbourne.
Fecho meu livro e começo a guardar o que sobrou do meu almoço.
- Espere. - Alice põe a mão no meu joelho. Encaro-a o mais friamente que posso, e ela tira. - Estou falando sério. Quero mesmo que você vá. E acho que o que você disse para Dan na semana passada foi fantástico. Gostaria muito de ser capaz de pensar em coisas desse tipo para dizer, mas nunca consigo. Não sou tão ágil assim. Sabe, eu nunca teria pensado nos sentimentos daquela mulher daquele jeito. Não antes de ouvir você dar aquela bronca em Dan. Sério, você foi ótima, o que disse estava muito certo, e você realmente mostrou a ele o idiota que ele é.
Sei imediatamente a que Alice está se referindo - a única vez que eu tinha baixado a guarda e me esquecido de mim mesma por um momento. Não costumo mais enfrentar as pessoas. Na verdade, essa é uma coisa que me esforço muito para evitar em minha vida diária. Mas o modo como Dan Johnson e seus amigos haviam se comportado duas semanas antes tinha me repugnado tanto, que não consegui me conter. A escola convidara uma pessoa para nos falar sobre planejamento de carreira e ingresso na universidade. Sem dúvida a palestra foi chata, já tínhamos ouvido aquilo um bilhão de vezes e a mulher que falava, por estar muito nervosa, gaguejava, hesitava e fazia rodeios confusos, o que só ia piorando à medida que a platéia ficava mais ruidosa, mais agitada. E Dan Johnson e seu grupo de amigos medonhos tinham se aproveitado dela. Foram tão cruéis e deliberadamente destrutivos, que a mulher acabou saindo da sala aos prantos, humilhada. Depois que tudo terminou, parei atrás de Dan no corredor e dei-lhe um tapinha no ombro.
Ele se virou com um olhar presunçoso, convencido, claramente prevendo algum tipo de aprovação ao seu comportamento.
- Alguma vez já passou por sua cabeça - comecei, minha voz surpreendentemente forte, inflamada de raiva - quanto você feriu aquela mulher? Essa é a vida dela, Daniel, a carreira, a reputação profissional dela. Sua patética tentativa de chamar a atenção significa uma enorme humilhação para ela. Tenho pena de você, Daniel, que deve ser muito triste e pequeno por dentro para precisar derrubar uma pessoa daquele jeito... alguém que você nem conhece.- Você foi maravilhosa - continua Alice. - E, para ser franca, eu fiquei surpresa. Bem, acho que todo mundo ficou. Ninguém fala com Dan daquele jeito. - Ela balança a cabeça. - Ninguém.
fala. "Bem eu falo", penso comigo mesma. Pelo menos meu eu verdadeiro
- Aquilo foi admirável. Corajoso.
E foi esta a palavra que me mobilizou: "Corajoso". Quero muito ser corajosa. Quero tanto que a covarde em mim seja apagada, despedaçada e destruída, que não consigo mais resistir a ela. Levanto-me e penduro a bolsa no ombro.
- Ok - digo, para minha própria surpresa. - Ok, eu vou.

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