Vivien tenta disfarçar, mas fica surpresa quando anuncio que vou passar o fim de semana fora com Alice e Robbie. Ela me dá um abraço apertado antes de sair para o trabalho.
- Divirta-se, mocinha - diz.
Decidimos ir para o sul e vamos no meu carro, o Peugeot novo, porque é o mais veloz c confortável. Deixamos Sydney na sexta-feira de manhã. Tanto Alice quanto eu deveríamos estar na escola, mas os professores são bastante lenientes com os alunos do último ano, e provavelmente nem comentarão nossa ausência. Em todo caso, estou levando meu exemplar de Hamlet, que planejo reler lagarteando ao sol. Robbie tirou um raro fim de semana de folga no restaurante e está na direção do carro, porque é o único de nós que não está restrito à velocidade máxima de 80 quilômetros por hora. Nós três, alvoroçados e de bom humor, passamos a maior parte das quatro horas de viagem até Merimbula rindo e fazendo piadas. Quando chegamos, vamos ao supermercado local nos abastecer de mantimentos para os próximos dias. Alice enche o carrinho de chocolates e pirulitos, Robbie e eu pegamos os itens mais práticos - ovos, leite, pão e papel higiênico. Depois de pôr as compras no porta- malas e de checar nosso mapa, rumamos para leste pela estradinha que nos leva à praia.
Alugamos uma velha cabana de madeira de dois quartos. Achamos a casa pela internet, e, embora houvesse lá umas duas fotos do interior - a cozinha e a sala de jantar -, não sabíamos muito bem o que iríamos encontrar. Assim, quando chegamos e vemos uma encantadora cabana caiada com uma varanda de madeira com vista para a praia, ficamos ao mesmo tempo encantados e aliviados.Entramos depressa e corremos pela casa, rindo e falando alto. - Isto é perfeito!
- Oh, Deus. Vejam aquela enorme banheira antiga. - E olhem só a vista. Dá para ouvir o mar de todos os cômodos. É
realmente esplêndido!
- Ei, venham dar uma olhada nos quartos. Estas camas. Elas são inacreditáveis!
Vestimos nossas roupas de banho e corremos para a praia. Corremos todos direto para a água, sem nos dar
o trabalho de experimentar a temperatura, e mergulhamos. A água está gelada, mas estou feliz demais, embriagada demais de vida, de amizade e da- certeza de que três dias inteiros de divertimento nos esperam, para me preocupar com o frio. Alice e Robbie jogam água um no outro, abraçam-se e riem. Ela corre dele, rindo e tropeçando. Ele a agarra, mas ela se afasta, e uma alça de seu biquíni cai, deixando um seio à mostra. Isso a faz rir mais ainda; e rodopiando e guinchando como uma criança excitada, ela puxa a outra alça para baixo, e os dois seios ficam livres. Em seguida ela os segura, suspende e aperta, de modo que os mamilos ficam apontados para o Robbie.
- Bum, bum! Você está morto! - exclama.
- Oh! Aaaaah ... – Robbi eleva a mão ao peito e cai de costas na água. Alice se vira para mim, os mamilos apontados.
- Não, não! - digo, rindo. - Por favor. Tenha misericórdia! Percebendo algum movimento pelo canto do olho, viro-me e avisto um
homem e uma mulher de meia-idade. Estão passando, olhando, ambos com o rosto exibindo desaprovação e aversão.
Alice acompanha meu olhar e os vê. Observo suaexpressão se transformar, o risonho divertimento substituído pela raiva. De repente ela se vira de modo a encarar o casal. Levando a mão às costas, desata o laço do sutiã, que balança solto em sua mão; em seguida pega a calcinha do biquíni, baixa-a, desvencilha-se dela e se endireita. Olha para o casal, nua e desafiante, e abre um sorriso frio, provocativo.
O homem e a mulher se afastam depressa, ruborizados, murmurando e sacudindo a cabeça.
Alice fica olhando para eles enquanto se afastam, depois joga a cabeça para trás e ri.
Banqueteamo-nos à noite com peixe e batatas fritas pedidos por telefone. As batatas estão crocantes, o peixe está fresco e saboroso, e nós três comemos até nos fartar. Quando terminamos, nos esticamos nos sofás da sala e conversamos preguiçosamente sobre coisa nenhuma.
- Meu Deus, eu odeio gente assim - diz Alice sem mais nem menos. - Assim como?
- Assim como aqueles caipiras interioranos, intolerantes e conservadores que vimos hoje na praia.
- Intolerantes? Tem certeza? Já fez uma análise completa deles? - Robbie olha para ela, curioso. - Depois de vê-Ios por um total de cinco segundos?
- Sim, acho que realmente fiz - responde Alice. – Vidas tacanhas, cabelos malcortados e roupas horríveis. Gordos e feios, ainda por cima. O tipo de gente que vota nos políticos conservadores e odeia gays. O tipo de gente que diz coisas do tipo... - e imitando um sotaque australiano carregado, diz: Ela é uma boa moça, apesar de ser preta. Se bem que não chegaria a convidá-la para jantar.
Rio da sátira maldosa de Alice, supondo que ela está apenas brincando. Mas Robbie não ri. Olha paraela e sacode a cabeça.
- Você consegue ser tão sórdida às vezes.
- Pode ser. Mas provavelmente estou certa a respeito deles. - Ela aponta para ele. -Você é bonzinho demais apenas visando seu próprio bem.
- Não sou bonzinho. Você é realmente injusta. Você realmente... Alice abre um sonoro bocejo, interrompendo-o, e estica os braços acima
da cabeça.
- Talvez eu seja injusta. Mas, e daí? O mundo todo é injusto, Robbie. E acredite: conheço esse tipo de gente. Conheço essa raça. Eles são exatamente como meus pais. Tristes. Amargos. Feios. E estão sempre preocupados com o que todos os outros estão fazendo porque a vida patética deles mesmos é um tédio. Posso ver isso nos olhos deles. Posso sentir o fedor deles a quilômetros de distância. - Ela se levanta e se estica de novo, exibindo o abdome bronzeado e o piercing no umbigo quando a camiseta sobe. - Seja como for, esta conversa está ficando chata. Nós já falamos demais sobre o assunto e só nos resta concordar em discordar. Estou me sentindo de repente muito, muito cansada. - Joga um beijo para nós dois e sai da sala.
Robbie e eu trocamos um sorriso, ouvimos Alice murmurar algo consigo mesma ao tirar a roupa e escutamos a cama ranger quando ela se deita.
- Não se levantem para fazer nenhuma travessura sem mim - grita ela do quarto. - Boa noite, crianças. Comportem-se.
- Boa noite, Alice.
- Quer ir se sentar lá fora? Na varanda? - pergunta Robbie após algum tempo.
- Claro.Pela expressão de seu rosto ao arranjar nossas cadeiras e pelo modo como espera que eu me sente antes de falar, percebo que ele tem alguma coisa em mente.
- Quero fazer uma pergunta para você - diz.
- Certo. Ele suspira.
- Detesto perguntar esse tipo de coisa. E vou entender se você não quiser responder. Sinta-se livre para me mandar cair fora.
- OK - rio. - Caia fora.
- Ao menos me deixe fazer a pergunta primeiro.
- Perdão. Pergunte.
Antes de falar, ele se vira para olhar a casa.
- Alguma vez Alice fez confidências a você? Sobre mim? Você sabe, contou como se sente?
- Não, não mesmo.
- Não mesmo? - Robbie me olha com expectativa, como se esperasse que eu me estendesse.
Mas a verdade é que, quando estamos sozinhas, Alice raramente o menciona. É claro que, quando temos planos de fazer alguma coisa juntos, ela fala sobre ele num sentido prático, mas nunca exprimiu de fato os sentimentos que nutre por ele. Uma vez lhe perguntei se o amava, se o considerava seu namorado, mas ela só deu uma risada de desdém, sacudiu a cabeça e disse que não era do tipo que namora. E embora seja óbvio que Robbie não é tão displicente em relação a ela - ele está muito claramente apaixonado por Alice -, sempre supus que houvesse algum tipo de entendimento entre os dois.
Mas Robbie não estaria me fazendo essas perguntas se soubesse exatamente a posição dele. Era claro que ele esperava mais de sua relação com Alice do que elaestava disposta a dar. Tenho um súbito impulso de lhe dizer para se proteger, para fortalecer seu coração, para procurar outra namorada, se quiser algo sério. Mas não digo; não posso. Na verdade, não sei o que Alice pensa de sua relação com Robbie - talvez o ame, mas relute em admitir, talvez tenha medo de se ferir - , e não me sinto no direito de dar conselho ou fazer advertências quando estou tão no escuro quanto ele.
- Faz só três meses que a conheço, Robbie.
- Mas vocês duas se tornaram muito próximas, passam bastante tempo juntas. Você deve fazer alguma idéia do que ela pensa. Mesmo que ela não diga nada diretamente.
- Mas ela não disse nada. Sinceramente. E, portanto, não, não sei nada além do que você sabe. - E olho para ele, confusa. - Mas, afinal, você não me disse que Alice fazia mal para você? Até a comparou com algum tipo de vício pernicioso. Pensei que você estivesse... - hesito, tentando encontrar a palavra certa - hum, sei lá, que estivesse nisso com os olhos bem abertos...
- Na verdade, estou é com o coração bem aberto, eu acho. - Ele dá um sorriso triste. - Às vezes consigo ser racional em relação a isso e me contentar com o que ela está oferecendo. Às vezes sou capaz de me concentrar em todas coisas ruins de nossa relação e me convencer de que qualquer coisa séria com Alice só vai servir para me deixar infeliz. Ou ao menos consigo fingir isso para mim mesmo bastante bem. Mas a realidade é que quero mais.
Ele suspira.
- Desculpe-me. Eu não devia ter interrogado você assim. É muito desagradável quando alguém tenta falar sobre suas relações com. uma terceira pessoa, não é? Detesto quando fazem isso comigo.- Não se preocupe. Não estou chateada. Nem um pouco. Só não tenho nenhuma resposta.
- Talvez eu deva procurar uma dessas pessoas que conseguem prever o futuro. Como se chamam?
- Um vidente?
- É isso. Um vidente.
- Por que você simplesmente não pergunta a ela? Converse seriamente com ela e pergunte o que ela quer.
- Já tentei. Pergunto o que ela sente, o que quer,
o tempo todo. Ela é uma mestra em evitar perguntas, você já deve ter notado, não é? Digo que a amo, e ela ri e muda de assunto. Se fico sério demais, ela se irrita e me diz para ficar quieto.
- Quem sabe não é preciso que você seja mais direto? – sorrio e ponho a mão em seu joelho, apertando-o afetuosamente. - Pergunte se ela quer se casar com você, ter filhos e viver feliz para sempre - brinco.
- Eu me casaria com ela, esse é o lado triste da história. A verdade é que gostaria de me casar com ela, de engravidá-Ia e de ter seis lindos filhos, de comprar uma casa e arranjar um emprego enfadonho para sustentar todos eles para sempre. O pacote todo. Faria isso num piscar de olhos. Adoraria. - Ele suspira de novo. - Eu a amo. Simplesmente não existe ninguém como Alice, não é? Ela é bonita, engraçada, inteligente ... e tem tanta energia, tanto entusiasmo. É capaz de fazer a coisa mais chata do mundo parecer divertida. Consegue transformar um dia comum numa festa. Comparadas com ela, todas as outras pessoas parecem realmente tão, bem, tão sem vida ...
- Puxa! Muito obrigada.
- Foi mal. Não estava me referindo a você.
- Tudo bem. Estou só brincando - rio. - Mascertamente a impressão que passa é de que você está apaixonado.
- É. Patético, ridiculamente apaixonado. Por uma menina que tem medo de compromisso.
Pergunto a mim mesma se ele está certo. Sempre acreditei que quando alguém diz que tem medo de compromisso, na realidade está apenas usando uma maneira conveniente de cair fora de uma relação indesejada. Uma maneira delicada de dar o fora em alguém, sem destruir o ego da pobre criatura que está sendo descartada. O problema é comigo, não com você, realmente não sou capaz de me comprometer de fato é uma pílula menos amarga de engolir que Ei, simplesmente não gosto de você o bastante para me amarrar. Tchauzinho. Mas ele pode estar certo com relação a Alice - sem dúvida ela tem alguma coisa diferente, algo secreto e fechado, e, apesar de sua aparente cordialidade e abertura, uma parte dela permanece escondida, intocável.
- Ela disse isso? - pergunto.
Robbie está olhando a praia, imerso em pensamentos. - Robbie?
- Perdão - diz ele. - Ela disse o quê?
- Alice disse mesmo que tem medo de compromisso? Ou isso é apenas o que você pensa?
- Não disse com essas palavras. Meu Deus. - Ele ri. Você imagina Alice dizendo uma coisa assim? Não. Ela não disse, mas é bastante óbvio, e faria sentido, não acha?
- Não sei. Não sei como você pode perceber essas coisas. - Acho que é por causa da mãe dela, dessas coisas – diz ele. - A mãe de
verdade dela. Toda aquela rejeição. Ela só pode ser um pouco desconfiada em relação ao amor.- A mãe de verdade dela? O que você quer dizer? - Ah, merda. - Ele olha para mim. - Ela não contou para você? - Não. Não me contou nada. O quê? Ela é adotada ou algo assim? - Isso mesmo. Droga. Não era para eu dizer mais nada. Eu deveria
esperar que ela mesma lhe contasse.
- Você praticamente já contou! A verdadeira mãe de Alice a rejeitou, e ela foi adotada. Já sei que ela não gosta das pessoas que a adotaram. Ao menos suponho que sejam eles que ela chama de pais, é isso? - É. Ela detesta os pais adotivos.
- Agora tudo faz um pouco mais de sentido. Antes eu não entendia. Perguntava a mim mesma como ela podia dizer aquelas coisas horríveis sobre os pais, chamá- Ios de gordos, estúpidos e do diabo a quatro e depois, no fôlego seguinte, mudar completamente e dizer algo realmente legal sobre a mãe. É porque são duas pessoas diferentes. Ela tem duas mães. - Isso. A mãe verdadeira, a mãe biológica, se chama Jo- Jo.
-Jo-Jo?
- É. Um apelido hippie para Joanne. É uma velha irremediavelmente drogada. A mulher mais egoísta, mais egocêntrica que já se viu.
- Mas Alice ...
- Ama perdidamente essa mãe - interrompe ele. - Adora-a. E Joanne é obscenamente rica. Herdou uma montanha de dinheiro dos pais. Ela o derrama sobre Alice agora. Satisfaz todos os desejos dela. E há um esnobismo estranho nessa história: apesar de ser uma viciada, Jo- Jo se faz de superior às pessoas que adotaram a filha. E Alice acredita nisso totalmente.
- Então é por isso que ela tem todas aquelas roupas caras, por isso que não precisa trabalhar. Jo- Jo dá dinheiro para ela.- É. Algum lance de culpa, acredito. Ela estava atrapalhada demais para cuidar de Alice e do irmão mais novo dela quando eles eram pequenos, por isso os enche de dinheiro, para compensar.
- Irmão? Alice tem um irmão?
- Tem.
- Um irmão. - Balanço a cabeça, pasmada. - Uau, não tinha a menor idéia. Ela nunca o mencionou, nem uma única vez! Qual é o nome dele?
Robbie fecha a cara.
- Na verdade, não sei. Alice fica estranha quando fala sobre ele. Fica toda perturbada. Só o chama de irmão mais novo. Sei que ele andou tendo algum tipo de problema com a polícia, alguma coisa grave, mas não sei exatamente o quê. Drogas, provavelmente, como a mãe.
Estou atônita por saber que Alice tem um irmão, que foi adotada, que tem segredos quase tão devastadores quanto os meus. Alice e eu temos mais em comum do que eu imaginava, e de repente me convenço de que tudo isso constitui uma coincidência tão extraordinária, que só é possível explicá-Ia como uma espécie de sinal: um sinal de que nós duas estávamos destinadas a nos encontrar, que estava em nosso destino ficarmos amigas.
- Que confusão! - digo.
-É mesmo.
- A vida realmente pode ser uma porcaria às vezes
- digo. - Coitada da Alice. - Mas o que realmente penso é coitados de nós. Nós três passamos por coisas terríveis: assassinato, câncer, abandono. E pela primeira vez fico tentada a contar a Robbie sobre RacheI. Não é compaixão que eu quero, mas a credibilidade que vem do fato de ter enfrentado evivido algo trágico. Posso dizer que compreendo, e é verdade, mas para Robbie e Alice, que não conhecem nada de meu passado, minhas palavras devem parecer vazias. As palavras consoladoras de quem não sabe o que é sofrimento.
Mas tenho medo de me arrepender de uma indiscrição como essa amanhã de manhã. Não digo nada.
Acordo cedo no dia seguinte e, apesar de ter dormido tarde, sinto-me revigorada e feliz. Da janela,
o sol jorra em minha cama, e fico deitada por algum tempo sob o lençol, apreciando aquele calor na pele. Posso ouvir o ruído surdo do mar e Robbie e Alice conversando sossegadamente no quarto ao lado.
Levanto-me, visto o robe e vou para a cozinha. Faço uma xícara de chá e a levo para a varanda. Debruço-me no para-peito e contemplo a praia. O mar está bonito, turquesa-claro, e as ondas se quebram suavemente na praia. Com a caneca aninhada nas mãos, desço da varanda e caminho em direção à água. Termino meu chá, pouso a caneca vazia na areia, olho para a casa atrás mim, para um lado e para outro da praia a fim de verificar se alguém me observa. Desabotoo o robe e deixo-o escorregar para o chão. Corro para a água, e, quando há profundidade suficiente, mergulho.
O mar está tão calmo, que consigo boiar confortavelmente de costas e nadar num crawl tranqüilo e agradável para lá e para cá. Depois de um bom tempo nadando, cansada e renovada ao mesmo tempo, visto de novo o robe e volto para a casa.
- Katherine? - Ouço Alice chamar quando entro. – O que você está fazendo?
Vou até o quarto deles e paro no vão da porta. Robbie e Alice estão sentados na cama, as pernas entrelaçadas. Ao me ver, Robbie puxa o lençol para se cobrir e abre um sorriso envergonhado. Sorrio paraeles, contente.
- Está uma linda manhã - digo. - Linda. Eu estava nadando e a água está perfeita. Vocês dois deviam ir. Vou preparar um café da manhã para nós. Ovos beneditinos, se vocês quiserem.
- Você vai me deixar gorda com toda essa comida maravilhosa. - Alice boceja e estica os braços acima da cabeça. - Gorda como meus monstruosos pais adotivos. - Ela olha para mim e arqueia as sobrancelhas. - Por falar nisso ...
- Sim - digo, e por alguma razão fico constrangida, como se tivesse sido surpreendida fazendo alguma coisa que não devia. Acho que é o modo como Alice me olha: como uma mãe zangada à espera de que o filho admita uma travessura da qual ela já sabe.
- Robbie me contou sobre ... que você é adotada. Que tem um irmão. Espero que não se importe.
Mas a expressão fria desapareceu do rosto de Alice e não sei mais se foi imaginação minha. Ela dá de ombros com indiferença e boceja de novo.
- Não que seja um grande segredo. Só me faltou oportunidade de contar. Mas, no fim das contas, não é realmente segredo. Quase não vale a pena falar sobre isso.
Noto que o semblante de Robbie se turva por um instante, seus lábios se franzem quase imperceptivelmente. Ele suspira e revira os olhos.
- É claro. Não é nada. Como tudo o mais para você, não é, Alice? Nada. Nada, nada, nada. Sua palavra favorita.
- Alto lá, Robbie! - exclama Alice, a voz dura e fria, uma expressão de raiva no rosto. - Se você não gosta do modo como levo minha vida, se desaprova minha maneira de pensar sobre tudo, o que está fazendo aqui?Hein, Robbie? O que exatamente você está fazendo aqui?
- Não desaprovo sua maneira de pensar. Não disse isso. Só acho uma bosta que você elimine tudo o que é emocional, como se isso não significasse nada. É uma espécie de bravata. Vive na defensiva ... e acho isso doentio.
- O quê? - Ela o fita com incredulidade, escorregando da cama e ficando de pé. Põe as mãos na cintura. Está usando uma camisola branca, um robe recatado e bonito, quase infantil, e uma mancha colorida apareceu em cada uma de suas bochechas. Seus olhos brilham de raiva. Ela parece ao mesmo tempo inocente, linda e perigosa, e é difícil desviar os olhos dela. Alice sacode a cabeça e dá um sorriso amargo. - O que você quer dizer, Robbie? Do que você está falando?
- Estou falando sobre você, Alice. Sua família. Sua mãe e seu irmão. Não sei nem o nome de seu irmão. Katherine nem mesmo sabia da existência de um irmão. Não acha que isso é um pouquinho esquisito? Você nunca fala sobre ele. Nunca fala sobre seus pais ou sua infância. Você nunca fala sobre nada.
- E por que eu deveria falar, Robbie? Só porque você acha que é o certo? Afinal, o que você está desesperado para saber? Qual é o detalhezinho sórdido que interessa a você? Hein? Você já sabe que Jo-Jo é viciada em heroína. Já sabe que eu fui adotada. Não falo sobre o meu irmão porque quase nunca o vejo. Porque ele não está exatamente disponível, não é? Não falo sobre ele porque não crescemos juntos, porque ele foi adotado por uns idiotas nojentos, teve uma vida de porcaria e agora está na cadeia, certo? Não falo sobre ele porque gente como você não seria capaz de entender
o que ele já sofreu.
Fico lá plantada, olhando para eles. É difícil me afastar, difícil não ouvir. Alice tem segredos. Eutambém. Por que não deveríamos ter? Quero dizer a Robbie para deixá-Ia em paz, para deixar todo aquele assunto de lado, mas aquela briga não é minha. Dou meia-volta e rumo para a cozinha. Alice grita meu nome.
- Não fuja! - diz ela.
Seu tom frio e imperativo me irrita. Ao responder, sou igualmente fria: - Não estou fugindo. Estou indo fazer o café da manhã. Estou com fome. - Quero apenas sua opinião - continua ela, como se eu não tivesse
falado. - Você não acha que eu tenho o direito de decidir sobre o que quero ou não quero falar? Ou é errado de minha parte guardar coisas para mim mesma? - Ela fuzila Robbie com os olhos, depois se vira para mim e levanta as sobrancelhas. - Ou será que amigos devem conversar sobre todas as coisas? Tudo o que aconteceu algum dia?
- Não - respondo calmamente. - Claro que não. - Claro que você pode ter segredos, penso, eu tenho os meus. Vamos enterrá-los bem fundo, fazer força para esquecê-los e nunca falar sobre eles. Nunca.
Mas não tenho chance de dizer mais nada, porque Robbie interrompe. - Vamos deixar Katherine fora disso. Essa briga não é dela. - É, mas ela está aí parada nos escutando como se fosse. - Não estou - digo, subitamente embaraçada e na defensiva. - Quis ir
embora. Você pediu minha opinião. – E decido parar por aí, antes de começar a parecer uma criança petulante. - Seja como for - dou de ombros -, estou faminta. Vou fazer o café da manhã.
Viro-me e caminho para a cozinha. A porta bate ruidosamente atrás de mim. Ouço Robbie exclamar alguma coisa e Alice retrucar com irritação. Dói em mim que Alice tenha sido capaz de ser tão indelicada, e sinto- me um pouco humilhada com a idéia de ser vista comouma espécie de abelhuda. Tiro os ingredientes da geladeira - ovos, bacon, limão, cebolinha, manteiga -, coloco-os na bancada e bato a porta com raiva.
Primeiro faço o molho holandês. Quebro os ovos e separo as gemas das claras com cuidado. Ainda posso escutar o zumbido das vozes de Robbie e Alice vindo do quarto. Eles estão bem mais quietos agora, e suas vozes soam mais calmas, como se estivessem fazendo as pazes. E, quando estou batendo as gemas, um braço sustentando a tigela contra o meu abdome, o outro se agitando energicamente, me pego sorrindo. Tivemos uma briga, penso, uma briga de verdade. Nossa primeira briga.
Como costuma acontecer com os amigos.
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Bela Maldade
Mystery / ThrillerAba da frente: Após uma horrível tragédia que deixou sua família, antes perfeita, devastada, Katherine Patterson se muda para uma nova cidade e inicia uma nova vida em um tranquilo anonimato. Mas seu plano de viver solitária e discretamente se torna...