sete

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Pego Sarah na creche mais cedo que de costume. Observo-a pela janela por um momento antes que me veja, e fico satisfeita ao constatar que ela parece perfeitamente feliz. Está brincando com massa de modelar verde- brilhante, completamente absorta, transformando a massinha, com palmadas e socos, em uma gororoba pegajosa e colorida. Sarah é uma menininha solitária, pouco à vontade com estranhos – exatamente como Rachel -, e, embora eu goste de ver que é cautelosa, também tenho receio que isso torne as coisas difíceis para ela. Afinal, vai precisar conviver com as pessoas, quer queira, quer não.
É engraçado porque eu nunca vi a timidez de Rachel como um tipo de desvantagem. Na verdade, era um traço que me parecia cativante. Mas pára minha filha quero que a vida seja perfeita. Quero que todos gostem dela. Quero que tudo seja tão fácil e tranqüilo quanto possível. As pessoas dizem que sou superprotetora, que preciso soltar Sarah, dar a ela espaço para abri o próprio caminho no mundo, mas creio que não existe proteção em excesso quando se trata daqueles que amamos. Tenho vontade agarrar essas pessoas pelo braço e gritar: Há perigo em toda parte, seus idiotas! Vocês pensam que estão seguros, pensam que as pessoas são confiáveis? Que são boas? Abram os olhos e olhem a vida! Mas elas só iriam pensar que sou louca. São ingênuas, têm memória curta, não percebem que o mundo está cheio de pessoas que nos querem mal, e fico pasmada por poderem ser tão cegas.
Ser mãe é difícil, contraditório, impossível. Quero que Sarah seja feliz, que faça amigos, que ria e se sinta alegre. Não quero que fique paralisada pelo medo e pela ansiedade. Mas também quero que seja cuidadosa. Que entre neste mundo perigoso com os olhos bastante abertos. Quando abro a porta e entro na salade brinquedos, paro atrás dela e espero que sinta minha presença e se vire. Adoro o primeiro instante depois que me vê, a expressão de puro deleite que cruza seu rosto, o modo como imediatamente esquece o que quer que esteja fazendo e corre para meus braços. Ela só passa duas tardes por semana na creche, quarta e sexta – tardes longas e enfadonhas para mim - , e sempre fico aliviada quando a apanho na tarde de sexta-feira, contente por mais uma semana ter terminado, por podermos ficar juntas durante quatro dias seguidos antes que chegue a hora de trazê-la de volta.
Vim apanhá-la cedo hoje para nossa viagem anual. Vou levá-la para Jindabyne, e estou empolgada como uma criança com a perspectiva do indubitável encantamento de Sarah quando vir a neve. Vamos fazer um boneco de neve, guerra de bolas de neve, talvez andar de trenó. Vamos tomar chocolate quente ao lado da lareira e desfrutar também um pouco de tempo só para nós, longe de meus pais.
- Mamãe! – exclama ela quando me vê. – levanta-se e corre, derrubando seu tamborete, na afobação, e abraça meu pescoço. – Estamos prontas para ir?
- Eu estou. E você?
- Você fez a minha mala?
- Fiz.
- Meu ursinho?
- É claro.
- E o vovô e a vovó? – Ela sabe quanto meus pais dependem dela, e me entristece que, tão novinha, já se preocupe com eles. - Eles vão se divertir muito neste fim de semana também. Vão receber amigos para jantar e tudo.
Seu rosto se ilumina.- Eles estão empolgados?
- Muito. Quase tão empolgados quanto nós.
Abaixo-me e a pego no colo, reúno suas bolsas, assino o registro de saída e vamos para o carro. Sair da cidade de Sydney é rápido e sem problemas, já que está cedo demais para a hora do rush de sexta-feira. Sarah está quieta no carro. Ela olha pela janela, o polegar na boca, relaxada como se estivesse em transe. Sempre é assim quando está no carro. Quando ela era bebê, passear um pouco de carro sempre foi a melhor maneira de fazê-la dormir ou parar de chorar.
Dirijo com cuidado na estrada, mantendo meu carro
o mais longe possível dos outros, lembrando as aulas de direção defensiva de papai. Ele tentou me dissuadir de fazer essa viagem. As estradas estarão terríveis, disse, todos os piores motoristas, os maníacos idiotas vão para lá nos fins de semana. E você não está acostumada a dirigir nessas condições. Foi rude. Não seja tão idiota. Mas percebi as lágrimas em seus olhos, o tremor em suas mãos.
Entendo seu horror – pessoas morrem nas estradas todos os dias. Uma pequena falha, um erro de avaliação, um lapso na concentração – qualquer uma dessas coisas nos põe no caminho das muitas carretas que lotam essa rodovia. Mais duas vidas perdidas num instante. Uma família já dilacerada, destruída. Meu pai sabe, melhor que a maioria das pessoas, que o impensável acontece. Sabe que pesadelos podem virar realidade. Assim, é por amor a ele que mantenho os olhos grudados na estrada, as mãos firmemente agarradas ao volante, a mente alerta. É o medo do meu pai que me impede de pisar mais no acelerador.

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