Muito mais que uma ressaca - VALENTINA

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Parecia que a minha cabeça pesava uma tonelada, e eu tinha quase certeza de que ainda podia ouvir ecos do surdo em minha cabeça. Quando eu finalmente consegui abrir meus olhos colados com os resquícios da maquiagem, me dei conta que pelo esforço necessário, a minha cara devia estar prestando uma homenagem à arte expressionista. Olhei em volta, reconhecendo o meu quarto, notando a crescente pilha de roupa suja ao lado do meu armário e outra pilha, essa de papel, de coisas que eu tinha que ler para a faculdade aquela semana. Só em pensar nisso me fazia desejar voltar para a cama...

Mas eu ainda estava com as mesmas roupas da noite passada, o vestido justo com franjas pretas que já não estava com uma aparência muito boa, as meias 7/8 presas nas ligas, e desfiadas em vários pontos, meus sapatos surrados, estavam jogados aos pés da minha cama, cada um em um ponto diferente. Eu não lembrava muito da noite passada, mas tinha certeza que tinha dado algum trabalho para Jasmine na volta pra casa. Mas a culpa era dela mesma.

Eu lembro de ser apresentada a dois rapazes que eram irmãos ou primos, e o sumiço de Jasmine com um deles, me deixando um belo presente de consolação. – Pelo menos na cabeça dela. – E eu comecei a beber para evitar a ladainha do garoto que não sabia ter 3 minutos de conversa interessante, e depois, as coisas começaram a ficar cada vez mais difíceis de lembrar. Era melhor não forçar, a minha cabeça já doía o suficiente.

Olhei pela janela e notei o dia já se despedindo, pintando o meu quarto com tons alaranjados. Juntei toda a coragem que eu tinha e saí da cama, agarrando a pilha de roupa acumulada e seguindo direto para o banheiro, nem ousei me olhar no espelho, dei as costas a ele e coloquei minhas roupas na maquina de lavar, aproveitando e tirando as que eu usava no processo, menos as meias, essas iam para o lixo. Me enfiei em baixo de uma ducha gelada, conseguindo ao menos me despertar com esse processo... em partes, de alguma forma eu me sentia estranha. Eu não sabia dizer, era como se eu sentisse um peso diferente no meu corpo, como se algum tipo de sensação nova havia despertado. Não devia ser nada... Era apenas ressaca... E eu precisava de água.

Fui até a cozinha, e enchi um grande copo de água, reparando no brilho cristalino que refletia no copo e aquele movimento pareceu um pouco lento aos meus olhos e sem querer eu me perdi naquela imagem. Quando me dei conta, aquilo que eu via se transformava em outra coisa e eu começava a me deixar levar, como se pulsasse em minha mente uma imagem, um rosto embaçado. Bati com as mãos nas laterais da minha cabeça e corri até o armário da cozinha e peguei o frasco de remédios e engoli uma pílula, me concentrando na realidade, no que eu podia tocar e no que eu podia sentir, tentando desacelerar o meu coração e bem aos poucos, o latejar da minha cabeça passava. Eu estava bem, tudo estava bem.

Voltei ao que devia ser feito... Preparei um lanche simples para o meu estomago irritado e busquei no quarto as partituras que eu devia estudar para as aulas de piano naquela semana. Olhei para o piano, encarando a madeira lisa, esquecendo qualquer mal estar. A música era o meu melhor remédio, para todos os tipos de crises que eu podia ter. Assim que sentei ao piano, foi instintivo o soar da sonata ao luar de Beethoven, meus dedos corriam livres pelas teclas, materializando a peça que eu adorava. Melancólica, sombria... eu me envolvia por aquela sensação e conseguia esquecer de qualquer coisa. Mas um simples pulsar do meu coração foi a prévia para o baque que se seguiria. Eu conhecia bem aquela dor... Do nada senti tudo mudar, e as notas dissonantes que soavam em meu ouvido me avisavam. Estava acontecendo de novo, a visão insistia, poderosa, de uma maneira que eu não estava conseguindo controlar. Como se algo me atingisse, cobrindo a minha visão e me impedindo de continuar a tocar, me impedindo de me mover.

Eu via olhos, nitidamente, como se estivessem na minha frente, olhos azuis que pareciam brilhar estranhamente, familiares de certa forma... Havia chuva, e estava escuro... sangue... Eu podia sentir o cheiro de sangue, sentir o gosto... As imagens pulsavam com o meu coração, me marcando. Diversas imagens que eu não conseguia entender. E as sensações eram intensas... A dor...

Eu caí, não conseguindo bloquear a dor que me envolvia, e não conseguia encontrar algo real que me levasse de volta a realidade, que me tirasse daquele redemoinho de sensações...

— Valentina! Valentina! – Meu nome... Uma voz e um caminho... Me concentrei na voz que me chamava, a voz de Erika tomava forma em meus ouvidos. A pulsação em minha cabeça diminuía de intensidade, e eu começava a ver a forma do rosto dela. Eu precisava voltar ao normal rápido, não podia ter crises na frente dela, eu sabia bem demais para onde ela me levaria se eu tivesse.

— Eu estou bem. – Me desvencilhei dela, procurando não tocá-la. Eu não queria voltar ao meu inferno pessoal por encostar nela.

Tentei respirar normalmente de novo, alcançando o lado pacifico da minha cabeça. Eu não iria pensar naquilo, aquilo não era nada, e logo a ardência em minha pele passava. Meu peito estava apertado, e um zumbido insistente continuava.

— Passei aqui para ver como você estava depois de ontem. Tem certeza que está tudo bem? – Erika dizia, me ajudando a levantar.

— Foi apenas um mal estar não se preocupe. Eu ainda não me recuperei de ontem – Eu sabia que era uma desculpa esfarrapada, mas era o melhor que eu podia fazer no momento. – Maldita ressaca. – falei assim mesmo

Eu preferia não olhar para ela, encarar aqueles olhos e ver que claramente ela sabia que eu mentia. Erika tomava conta de mim há bastante tempo para saber bem como funcionava as minhas visões e como eu me comportava por causa delas.

E principalmente, por que de alguma forma, a visão que eu tive tinha sido diferente do de sempre, dessa vez... Intenso, com um padrão que eu não estava familiarizada e uma força que eu não compreendia. Mas eu não podia ficar desesperada, tinha que fazer o de sempre, não importava o quão fosse estranho. Tinha que pensar racionalmente e tentar entender o que minha visão queria dizer. E principalmente, longe dos olhos dela. Eu precisava ficar sozinha.

Segui até o quarto e fiz algo que eu não costumava fazer, normalmente eu não me deixava levar pelas minhas visões, por que eram tantas que eu ficaria louca se desse atenção para cada uma delas, mas principalmente por que eu tinha medo delas, pavor para ser mais especifica. Mas algo me dizia que aquilo era diferente, que eu precisava pensar sobre. O homem que eu via na minha visão era novo. Mas de alguma forma era familiar... como se já o conhecesse... mesmo não tendo qualquer lembrança. Me forcei a buscar em minha mente, mas uma dor aguda no alto da minha cabeça me fez parar, eu não podia continuar com aquilo tendo Erika ali, se eu ficasse inconsciente sabia exatamente para onde ela me levaria. E aquilo eu não podia arriscar...

Decidi deixar por hora o aviso que eu recebera e esperar que a visão me encontrasse mais uma vez, por que sabia que ela viria. Ela sempre vinha, eu estando preparada ou não... Me joguei na cama, subitamente exausta com tudo e agitada demais para dormir, me concentrei apenas em observar a luz que dançava no meu quarto enquanto a noite chegava deixando tudo com suas sombras negras e pesadas me envolvendo em uma escuridão silenciosa.

Filhos do Sangue - O DespertarOnde histórias criam vida. Descubra agora