Passeio

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— Bom dia, meu pepininho amarelo — Marcos disse, arreganhando a porta do quarto de Daniela.

— Hmmmm... — ela gemeu com incômodo ao virar para o outro lado e cobrir metade da cabeça. — Pai, eu tava dormindo! — o advertiu ainda de olhos fechados com a boca por baixo do edredom.

— Como pode dormir até tarde com um lugar como esse para desbravar?

Ela sentiu a ponta do colchão se abaixar e uma mão grande afagar seu cabelo.

— Hoje é domingo — ela disse, rouca. — Por isso.

— Você terá outros.

— Não... pai! — Virou para o outro lado, gemendo em preguiça. — Deixe eu dormir, por favor. Amanhã a gente volta e eu tenho aula.

Ele continuou afagando a cabeça dela, dando agora uma risada gostosa.

— Deixa eu te contar o segredo da vida para você.

— Depois.

— Vocês crianças e adolescentes pensam que vai ser o fim do mundo e que vão morrer se fizerem, pelo menos uma vez, alguma coisa que não querem. — Ela ficou quieta. — Eis a solução para as suas chatices: vocês vão sobreviver. E o amanhã ainda será amanhã. E será tão do jeitinho que seria se vocês fizessem ou não o que queriam no dia passado. E se você fizer isso e não gostar, geralmente as lembranças são menos pesarosas do que viver aquilo. Então não importa o quão chato seja hoje, amanhã, quando se lembrar, não será tãaaao chato. Só será uma lembrança qualquer que pode ou não te aborrecer um pouco.

— Ainda assim não quero. — A menina bufou.

— Ainda bem que você é pequena e, pro seu próprio bem, eu posso te forçar a fazer algumas coisas.

Marcos puxou o edredom e o clarão do dia foi tudo o que viu quando abriu os olhos.


DANIELA ABRIU OS OLHOS tão de repente que levou um susto. A cortina branca esvoaçava, pendida sobre a janela de vidro. Uma fina greta dela estava aberta, permitindo que um ar sereno com um leve frescor e fragrância de eucalipto invadisse o quarto.

A natureza gritava do lado de fora. As folhas das árvores farfalhavam, passarinhos cantavam, e até pintinhos piavam, galinhas e galos carcarejavam.

Uma onda de vento uivou num fraco bafo nos ouvidos dela e a moça se espreguiçou. Respirou fundo, olhando à sua volta. O som do cobertor mexendo surdiu todos os outros sons, mas assim que ela parou, a natureza tornou a falar. Era um som de tranquilidade, principalmente quando os passarinhos cantavam.

Era outro cheiro. O cheiro de sua infância. Quase sentiu-se incorporar naquela menininha que brincava com o seu pai ao redor do casarão e passava os melhores dias de sua vida que ela podia se lembrar. E nem parecia que para sair da cama precisava que seu pai a forçasse a se levantar. Se aquela menininha soubesse que a melhor fase de sua vida foi praticamente toda ali, e que as memórias que ela pensara que seriam ruins, eram agora o alicerce das melhores lembranças de seu pai...

Lembrou também que brincava com os filhos do caseiro e com Luciano. Jogavam bets, além de futebol e vôlei. Isso quando não estavam na praia ali perto.

Ela esticou o braço outra vez, ainda sentindo-se envolvida naquele cheiro de sua infância. Era intensa a forma como as lembranças lhe viam à cabeça. A anestesiou do mundo por breves momentos. Mas logo o aroma da natureza se tornou corriqueiro e a sensação diminuiu.

Nesse instante ela alcançou o seu celular acima do criado mudo e desbloqueou a tela. Eram 11hrs37Min. Levantou num pulo, imaginando se deparar com o relógio marcando 09hrs e alguma coisa.

Sujo, imoral e inconsequenteOnde histórias criam vida. Descubra agora