A DECISÃO DE CALUS

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Parte 7

E.5.: 1786, 6/1 PRI.

Algum lugar ao leste de Anárquia

A luz que entrava pelo buraco no telhado começou a incomodar o sono de Calus, que franziu o sobrolho ao despertar. A essa altura Daro já estava sentado na cama de palha a observar o irmão.

— O que foi que aconteceu comigo? O que aconteceu com a nossa família? Onde estamos? Somos mesmo irmãos? – desferiu a chuva de perguntas um pouco agoniado por não se lembrar de nada, e também ávido por conhecer a própria história.

— Uma coisa de cada vez – respondeu com um bocejo – Primeiro o mais importante, você está se sentindo bem? – perguntou apontando para a cabeça de Daro.

— Sim. Agora me conta tudo – Daro já não estava mais se contendo.

— Vou te contar tudo no caminho – disse se levantando e recolhendo o que precisava.

— No caminho? Pra onde? A gente não mora aqui? – soltou mais uma rajada de perguntas.

— Já ficamos aqui tempo demais. Você já está melhor, então é hora de sairmos daqui. E pare com essas perguntas. Vou te contar tudo, mas primeiro vamos sair daqui o quanto antes. – proferiu Calus com ar mais sério de liderança. — Anda logo garoto, não fique aí parado me olhando, já te carreguei de mais, é hora de você fazer alguma coisa não é! – vociferou jogando a trouxa de itens que recolhera em cima de Daro – Não fique pra trás, ou vai perder as suas respostas, e eu não vou repetir – disse enquanto vasculhava os itens que iam precisar. Daro relutou por alguns instantes, mas depois de receber um olhar de repreensão, se conformou em seguir Calus porta a fora. Mesmo sem se lembrar dele, era melhor sua companhia e a esperança de ter algumas poucas respostas do que ficar sozinho e sem resposta nenhuma.

Daro caminhou por horas em silêncio atrás de Calus. Desde que partiram da velha cabana, não deram uma palavra sequer, embora Calus tivesse dito que contaria tudo a Daro. Apesar da frustração de ainda não ter nenhuma resposta, Daro sentia certa segurança com a presença de Calus.

Calus andava com cautela em meio à floresta, pois sabia que mesmo já estando a uma distância considerável de seu antigo cativeiro, o perigo ainda não era nulo, podia haver animais; caçadores; bandidos; rebeldes; ou pior, algum rastreador do mercado de escravos. Os rastreadores eram homens incríveis, capazes de acertar o olho de um veado em meio a um nevoeiro espesso; de encontrar um pardal tendo como pista apenas a gaiola de onde saiu; de farejar com mais precisão que um lobo faminto; e por fim, detinham uma habilidade incrível com a espada. Eram capazes de decapitar oponentes três vezes maiores que eles antes mesmo que pudessem revidar. Era de fato um milagre ainda não terem sido pegos. "O que terá acontecido para que não tenham vindo à nossa procura ainda? Doms" pensou. Ainda tinha a questão de Daro, o que contar a ele? Já haviam se passado algumas horas desde que começaram a caminhada e ainda não tinha nenhuma ideia do que diria ao irmão. Que eram escravos e à custa da morte de um amigo conseguiram fugir? Ou que vira os pais morrerem à sua frente quando criança? Não! O garoto tinha recebido uma chance de ter uma memória melhor, mais feliz, ou pelo menos, menos traumatizante que a vida que tivera.

— Daro. – rompeu o silêncio ainda sem olhar pra trás – Ouça bem. Somos somente eu e você agora. Somos órfãos, não temos parentes, não temos casa, não temos para onde voltar. Só temos um ao outro, e só temos uma direção a seguir... Pra frente. – Não contara nenhuma mentira, mas também não dissera a verdade.

— O que aconteceu comigo? – perguntou compreendendo um pouco a situação.

— Eu não fui forte o suficiente pra te proteger. – a voz se extinguiu por um instante – Me desculpe – Calus parou entalado com as palavras — Eu vou ficar forte, muito forte, e quando eu conseguir isso, vou ficar ainda mais forte, e ninguém nunca mais vai encostar um dedo em você – completou com a voz chorosa. Embora fosse o mais velho, ainda era uma criança — E quando você estiver em segurança, vou voltar e acabar com aquele maldito lugar – pensou franzindo o sobrolho com um olhar de puro ódio. — Irmãos protegem um ao outro... Custe o que custar – finalizou abrandando a voz para não transparecer suas emoções.

— Então eu também tenho que ficar muito forte né irmão? – afirmou Daro concordando com a explicação recebida – Mas como vamos ficar fortes? – questionou.

— Primeiro, precisamos achar algum vilarejo que tenha uma biblioteca – respondeu categórico.

— Biblioteca? – perguntou confuso enquanto retirava a teia de aranha que se enroscou em seu braço.

— Tenho um livro só que não sei ler. Por isso precisamos achar uma biblioteca e conseguir algum daqueles velhos para ensinar a gente – respondeu mais uma vez categórico dando uma olhadinha de soslaio para Daro.

— Não precisa de biblioteca para isso garoto – ecoou a voz grave e calma.



*E.5.: Era dos 5

*1786: ano

*5/1: 6° dia da 1° quinzena

*PRI.: primavera

A GERAÇÃO DE PRAGASOnde histórias criam vida. Descubra agora