1 - Adrian

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Mais uma noite chuvosa, parecia que estava em meio ao dilúvio, mais uma vez, como se dá primeira já não tivesse sido suficiente. O volume era tão grande que era o assunto das manchetes dos jornais londrinos. A senhora Doroti dormia, tinha sido um dia tranquilo para ela, felizmente com poucas dores, o câncer a consumia, quanto mais se espalhava, mais dores ela sentia.
A velhinha já estava internada há três meses nesse hospital, um dos melhores da cidade e eu estou com ela a mais ou menos um mês. Nesse tempo que estou aqui, posso contar nos dedos de uma mão quantos de seus parentes, filhos e netos vieram visitá-la. É muito triste ver a situação, como os idosos são praticamente abandonados na hora da morte, ainda mais a da Doroti, uma senhora tão boa, que ajudou a família a ser o que é hoje, que usou de todos os seus esforços para nunca faltar nada para seus filhos e que foi o pilar que sustentou por muito tempo os parentes unidos, mas que agora não passam no hospital com a desculpa de estarem correndo.
As vezes, ela fala para mim.
-Alan, querido, ainda bem que tenho você. - dizia ela naquela voz rouca e cortada.
-Senhora Doroti, você é como uma mãe para mim, uma mulher incrível.
Algumas noites em que conseguia ficar acordada até um pouco mais tarde me contava algumas histórias sobre a filha mais nova, a única que aparece aqui uma vez a cada quinze dias, pelo menos. Ela me disse que Joana era uma criança muito briguenta e que um dia a secretaria da escola infantil ligou para sua casa pedindo a presença dela na escola o quanto antes. Doroti ficou desesperada com a filha, pensando o pior, quando chegou na escola viu duas crianças sentadas no banco fora da sala da diretora, as meninas estavam imundas, descabelas e com belas marcas de unhada nos braços, mas não prestou muita atenção nas meninas, pois estava preocupada com a filha. Bateu na porta da diretora e a mesma pediu para que entrasse.
-Sente-se Doroti, precisamos conversar sobre Joana. - a voz dela estava séria.
-Por favor senhora, diga logo o que aconteceu com a minha menina.
-A senhora não viu com seus próprios olhos quando chegou a minha sala?
Doroti ficou confusa, além das duas meninas do lado de fora da sala não havia mais ninguém e teria notado a filha caso a visse. Vendo a expressão de confusão no rosto da mãe, a diretora levantou da cadeira, foi até o lado de fora da sala e voltou com uma das meninas, segurando-a pelo braço, fez a garotinhas sentar ao lado da senhora.
-Quer contar você mesma o que aconteceu, Joana? - perguntou a diretora ao se sentar novamente em sua cadeira.
-Não foi por querer, mamãe. - a voz da menininha carregava culpa.
-Filha? - Doroti tirou o cabelo da criança do rosto e em meio toda a terra no rosto e alguns arranhões encontrou o rosto da sua cria - Joana, o que aconteceu menina?
-Ela que começou mamãe.
Doroti me contou que a filha foi defender uma formiga que a outra menina tinha matado, que ela não poderia matar um animal tão indefeso e que as duas acabaram brigando, rolando na terra e puxando os cabelos uma da outra, até que uma professora, junto da ajudante, conseguiu separar as crianças.
-Minha caçula sempre foi defensora das pequenas causas, desde um animal tão pequeno, até um tubarão que comeu uma foca, já que ela não aceitava que os animais tinham que matar uns aos outros para se alimentarem. Era muito bonito de se ver.
Essa foi uma das histórias que a senhora Doroti me contou entre tantas outras.
Hoje, ela não teve história alguma, o sono chegou cedo demais e eu fiquei aqui olhando a chuva alagar as ruas, causar o caos na cidade mais caótica em que já estive.
Uma batida na porta me tirou a atenção da rua.
-Boa noite Alan, como está a chuva? - disse o doutor Carlos, especialista em oncologia.
-Muito forte ainda doutor, creio que ficaremos ilhados no hospital.
-E me diga quando não ficamos ilhados nesse hospital, mesmo sem chuva? - ele fez uma brincadeira.
-Verdade doutor, muito difícil sair daqui no horário ultimamente.
-Como a senhora Doroti esta hoje? - o médico pegou o prontuário no pé na cama.
-Felizmente hoje ela teve poucas dores, jantou muito bem, comeu toda a comida e não se queixou de nada. - tentei fazer um resumo do dia dela.
-Ótimo, ela é muito forte, pena que o câncer está se espalhando muito rápido, não sei quanto tempo mais ela aguentará.
"Só mais essa noite, doutor", pensei
-Não deve ser mais tanto tempo doutor, não pelo diagnóstico do médico da manhã.
-O que aquele sacana disse? - doutor Carlos não gostava muito do outro médico.
-Ele deu mais essa semana, até pediu para falarmos com a família.
-Não seria tão pessimista, mas é um bom diagnóstico, faça isso, ligue para a família e diga que já podem se preparar para pior.
-Sim, senhor.
-Muito bem, os sinais dela estão bons, o dia correu bem, então eu volto amanhã. - ele colocou o prontuário no lugar e se retirou - Até mais Alan, tenha uma boa noite e tenta não se afogar quando ir embora.
-Para o senhor também, doutor.
A noite caiu e fui para o meu pequeno apartamento no centro da cidade, apenas quarenta metros quadrados de puro aperto. Cheguei em casa parecendo um golden retrivier molhado, fui direto para o chuveiro tomar um banho quente. Fazer esses atos humanos tornou-se rotineiros, mesmo sabendo que são desnecessários para mim.
Depois de limpo e quente fui até a cozinha pegar algo para comer, congelados são ótimos e extremamente práticos, mas hoje resolvi comer uma salada que estava na geladeira esperando um momento de preguiça, como o de hoje, para comer, precisava de algo rápido.
Assim que terminei de comer, deixei o prato na pia e fui para o sofá, na mesa de centro estava a pasta com as informações da senhora Doroti. Queria conferir uma última vez que a chegada da senhora estava certa, ela seria recepcionada nos portões e a levariam pelo túnel até seu destino final. Enquanto conferia a papelada, um ponto de luz surgiu na poltrona, aos poucos ele foi tomando forma, até que Maria e sua cabeleira se solidificassem.
-Levando seu trabalho a sério, assim que eu gosto de ver. - Maria sempre um pouco arrogante.
-Sempre levei meu trabalho a sério. - fechei a pasta e dei atenção a minha superior.
-Como vai a Doroti? Tudo pronto?
-Sim, acabei de verificar tudo novamente. - com a cabeça indiquei a pasta na minha mão.
-Não sei porque se preocupa tanto com a passagem, sempre fazendo recepções especiais, tratando com tanta atenção desnecessária.
-Engana-se achando isso. Idosos são religiosos, acreditam no algo a mais e não me custa nada oferecer-lhes esse plus.
-Ainda é uma criança. - ela deu uma risada de escárnio.
-Desculpe-me se ainda tenho sentimentos, ao contrário de você.
Ela arregalou os olhos ao encarar-me, mas se achou que eu teria alguma reação de medo com aquele olhar, estava enganada.
-Cuidado com o que fala, Adrian, sou sua superior, esqueceu disso?
-Não, Maria, mas já estou cansado de ser questionado sobre meu método de trabalho. É assim que gosto de trabalhar e gostaria que respeitasse e entendesse isso. - fui firme.
-Muito bem, não está aqui quem disse aquilo. - ela se recompôs.
Maria estendeu a mão e materializou uma nova pasta. Essa era uma pouco mais fina, o que significava que a pessoa não tinha vivido muito, quanto mais anos de vida, mais grossa é sua pasta. Ela colocou o objeto em cima da minha mesa de centro.
-Ela é a próxima.
Olhei a pasta, pertencia a Nina Albuquerque, vinte e dois anos.
-Não pode estar falando sério.
-Por que não estaria? - ela me olhou como se eu fosse um idiota.
-Essa garota só tem vinte e dois anos, Maria, não teve tempo de viver ainda.
-Se a pasta dela está aqui é porque já viveu o suficiente.
-O suficiente para que? Para ter um coração partido? - estava horrorizado com aquilo.
-Adrian, já chega! - ela se levantou - Ela é a próxima e ponto final. Amanhã trate logo da senhora Doroti e siga seu trabalho. - fiz menção de falar algo, mas ela fez um gesto de corte no ar - Sem mais uma palavra, esse é o seu trabalho. Tenha uma boa noite.
E com isso ela felizmente voltou a ser um ponto de luz e sumiu.
Não consegui tocar naquela pasta novamente, perdi a vontade de fazer qualquer coisa e fui me deitar, eram quatro da manhã e precisava descansar. Dias de desligamentos exigem muito esforço.

No dia seguinte cheguei mais cedo no hospital, a senhora Doroti estava com visita no quarto quando apareci no leito dela. Certamente seria a família respondendo ao telefonema dizendo que restava pouco tempo de vida para aquela linda senhora.
-Ai está você. - a senhora Doroti parou de conversar quando cheguei.
-Vejo que o dia está ótimo, não? - olhei para seus familiares.
-Sim, estou muito feliz, sinto que agora posso ir em paz.
É estranho como as pessoas pressentem suas mortes.
-Não fale isso mamãe - disse Joana - A senhora estará conosco em breve.
-Minha filha, não seja ingênua, essa velha já fez o possível por vocês, está na hora dela descansar.
-Volto após o término do horário de visita para lhe fazer um pouco mais de companhia. - e me retirei, Joana me seguiu até o corredor.
-É verdade que ela tem pouco tempo de vida? - a mulher já tinha lágrimas nos olhos.
-Sim, senhora, o câncer se espalhou silenciosamente e infelizmente não há mais nada que possamos fazer. - tirei um lenço do jaleco e entreguei para ela.
-Obrigada. - ela aceitou e enxugou as lágrimas - Vou voltar lá para dentro, sinto que devo ficar com ela o máximo possível.
-É o melhor a se fazer no momento.
Deixei a família a sós, era um momento feliz para Doroti e ela partiria mais feliz sabendo que passou seus últimos minutos com a família.
Voltei a fazer as minhas rotinas de enfermeiro, que acabei aprendendo na pratica, observando meus colegas de trabalho um pouco antes de começar a cuidar de Doroti. Verifiquei alguns outros pacientes, dei-lhes seus medicamentos, conversei com um senhor que tinha acabado de fazer uma cirurgia na perna e arrumei umas papeladas.
As oito horas da noite, quando o horário de visita acabou, vi os familiares de Doroti irem embora.
-Muito obrigada por tudo que faz pela minha mãe - Joana disse para mim - Não sei como lhe agradecer por isso.
-Só faço meu trabalho senhora e sua mãe deixa tudo mais leve, é uma mulher maravilhosa.
-Sim, ela é. - ela suspirou - Mais uma vez muito obrigada.
-Não há de que.
-Ela pediu para você ir até o quarto agora.
-Estou indo.
Assim que me despedi de Joana e dos outros, fui até o leito de Doroti.
-Gostou do seu dia? Foi bem movimentado. - disse assim que entrei.
-Alan, querido. Como uma velha não ficaria feliz com tamanha comissão familiar? - ela olhava através da janela - Sinto que estou preparada para partir.
-A senhora sabe porque estou aqui - não era uma pergunta, muitas vezes sentia que ela conseguia enxergar muito além das minhas roupas brancas de enfermeiro.
-Sim, é bonito do outro lado? - agora ela me olhava, seus olhos marejados.
-Doroti, é o lugar mais lindo do universo.
Andei até a janela que dava para o corredor e a fechei. Fui até a porta e fiz o mesmo. Estava na hora.
-Meu verdadeiro nome é Adrian e eu sou o anjo que fará a passagem da senhora para o paraíso.
A luz que irradiava do meu corpo fez minhas roupas mudarem, agora eu estava com uma camiseta simples branca, calças da mesma cor e uma sandália. Ela me olhava surpresa, mas sua reação ficou ainda pior quando soltei minhas asas que agora ocupavam praticamente o cômodo todo.
-É tão lindo - Doroti não conseguia tirar os olhos delas. - Adrian, como sonhei com esse dia, como queria saber se era igual aos livros que li.
-Sim, senhora, é igual aos seus livros.
-Leve-me - ela estendeu os braços magros em minha direção. - Estou pronta para ir.
-A senhora cumpriu muito bem seu papel aqui na terra, alimentou e educou seus filhos, deu carinho e amor a todos, levou uma vida simples e humilde, mas agora está na hora de descansar.
Cheguei mais perto dela, segurei seu braço direito.
-Sim, meu dever para com minha família está cumprido - ela fechou os olhos.
-Siga em paz Doroteia Refolegan, o paraíso a aguarda. - coloquei o polegar direito na marca de nascença dela e assim ela adormeceu.
Sua alma saiu do corpo e seguiu pela passagem para os portões do paraíso.
Assim que olhei para ela parecia calma, feliz, tinha um leve sorriso no rosto.
As máquinas apitaram, o coração dela parou de bater, passos apressados vinham do corredor, era a hora de voltar aos meus trajes de enfermeiro. A porta abriu de repente e uma equipe inteira de enfermeiros e médicos chegou, mas já era tarde demais, nada que fizessem faria a senhora acordar.
-Ela partiu - eu disse, estava com uma mão em seu braço e outra em sua testa.
Toda a equipe ficou parada olhando aquele corpo sem vida.
-Avisem aos familiares e tomem os procedimentos básicos - disse o doutor Carlos. - Mais uma grande alma que vai para o céu.
Desligamos os aparelhos, preparamos o corpo e esperamos a família chegar.
Meu dever estava cumprido, o anjo da morte levou mais uma alma para o paraíso.
Fiz o que era necessário para sair daquela equipe médica. Inventei papéis que diziam que eu seria transferido para um hospital no interior de Londres no dia seguinte, não houve tempo para despedidas, o que foi bom, esperei acabar meu turno e fui para meu pequeno apartamento.
A parte ruim do meu emprego e que dificilmente mantenho amizades prolongadas, as pessoas sempre ficam para trás, seguem suas vidas sem se lembrar do enfermeiro, ou cozinheiro, ou primo de terceiro grau que ficou com elas durante aquele certo período de tempo. É um trabalho solitário, individual e em dias como os de hoje, triste.
A chuva que veio de madrugada, era minha única companhia naquela noite escura e solitária.

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