Cap 14 - Ouvir histórias de pessoas desconhecidas

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   Dia de Natal! Todas as famílias felizes, festejando e crianças abrindo os presentes que o Papai Noel deixou embaixo da árvore. Eu vi o Papai Noel uma vez, aliás, quando eu tinha uns seis anos. Foi a noite mais feliz da minha vida. Mas, pela manhã, meu irmão me contou que era apenas meu pai fantasiado. Foi a manhã mais frustrada da minha vida.
   Enfim, não passei o dia em casa. Depois do almoço, saí e fui para um Shopping distante de casa. Passei a tarde no cinema, assisti quase todos os filmes em cartaz. Durante o intervalo de um filme para o outro, apenas comprava mais pipoca e dava uma volta pelo Shopping, acabei comprando um presente para Rosário e um para Rafael. Joguei ambos na mochila.
   Ainda não falei sobre o item. Enfim, hoje é basicamente ouvir novas histórias. Histórias frustrantes de pessoas frustradas, que passam a noite de Natal num ônibus. Como eu.
   Fiquei no Shopping, até ele fechar. Saí junto com uma multidão de pessoas, e fui para um ponto de ônibus mais distante e vazio.
   Era próximo das onze horas da noite, e o ônibus ainda não havia passado. Comecei a ficar assustada, era uma rua escura e sem nenhum movimento. Passou pela minha cabeça então, eliminar esse item e mudar rapidamente para outra coisa, mas seria trapaça. Quando já estava cansada de esperar, um ônibus um pouco mal acabado, passou por lá. Entrei sem nem mesmo ver se ia para Copacabana, o tempo estava se esgotando.
   Assim que entrei, pude ver que o ônibus havia apenas quatro pessoas. Uma mulher branca e magra, com cabelos loiros e um vestido preto curto e rasgado. Ela fumava um cigarro, e por alguns segundos, perguntei-me se era permitido fumar no ônibus. Também havia uma travesti, negra e com longos cabelos castanho claro. Estava muito maquiada e cheia de acessórios, era muito bonita. Havia um homem também negro, careca, forte e de camisa social. Parecia ser o único incomodado com a moça que fumava. Por último, um menino, que aparentava ser bem jovem, com uma jaqueta preta e touca também preta. Ele estava usando fones de ouvido e estava segurando uma enorme mochila. O motorista era um senhor, com os cabelos todos brancos, e com os olhos caindo de sono. Paguei-o e passei na catraca. Sentei no banco de trás, e colei o papel na janela.

Conte-me sua história.

   Tusso para chamar a atenção das pessoas, que olharam para mim confusas. Depois de me encarar, voltaram a focar na rua. Fiquei chateada, pensando que fui uma idiota achando que alguém viria. Até que a moça negra se levantou.
– Oi - ela falou sentando ao meu lado - Meu nome é Patrícia.
Sorri.
– Não sei bem por onde começar - ela riu - Bom, eu tenho trinta e quatro anos, e sou garçonete de um bar perto da minha casa. Sou solteira. Quer dizer, divorciada. Me casei com vinte anos, mas as coisas não acabaram muito bem. Ela não aceitou essa minha - ela pausou - mudança. Não a julgo por isso.
Continuei prestando atenção na história.
– Tenho um filho de oito anos, o Lucas. Ele mora com a mãe, mas de vez em quando vem me visitar. Hoje ele me aceita melhor também. É claro que onde eu moro não é nada perto da casa da mãe dele. Mas é o que eu posso ter no momento. O salário de garçonete não é muito bom, sabe. Não pra tudo que eu tenho que passar. Além das humilhações comuns que qualquer funcionário passa, ainda tenho que ouvir certas coisas.
Ela respirou fundo.
Traveco! - gritou - Trava! - gritou mais alto o que fez todos olharem para trás. Então a moça loira sentou ao nosso lado, e ofereceu um cigarro para a Patrícia, que nessa hora já estava em prantos.
– Eu só queria ser tratada normalmente, sabe? Poder comprar um pacote de biscoito no mercado sem escutar certas coisas - ela aceitou o cigarro e começou a tragar. Dei um abraço nela.
– Também estou na merda, mana - falou a moça loira, cruzando as pernas - O mundo não é muito legal com a gente.
Depois de fumar mais um pouco, ela jogou o cigarro pela janela e respirou fundo.
– Meu nome é Alessandra. Mas costumam me chamar de Alê. Sou prostituta desde novinha, quando meu pai saiu de casa, largando minha mãe e seus cinco filhos. Babaca.
Ouvi atentamente, enquanto ainda abraçava Patrícia, que não parava de chorar.
– As pessoas acham que é fácil, né? É tudo um luxo. Ganhar dinheiro pra fazer sexo, uau! - ela riu - Quem me dera se fosse bom assim. Ontem mesmo minha colega foi estuprada. Os caras acham que só porque tá pagando, pode fazer o que quiser com a gente. Eu mando logo ir se foder e comprar uma boneca - ela riu mais ainda - Ainda agora um homem fugiu sem pagar. E ainda rasgou meu vestido.
Ela acendeu mais um cigarro.
– Mas a gente tem que sobreviver, né? Já tentei trabalhar em outras lugares, como caixa de supermercado. Mas quem quer empregar uma ex prostituta, drogada, e sem experiência?
   Nessa hora gostaria muito de ajudar. Se meu pai fosse confiável, poderia pedir uma vaga como recepcionista no hospital. Mas ele não é. Ele a assediaria todo dia. Não quero mais ninguém sofrendo nas mãos daquele monstro.
– Ficou pensativa - disse Patrícia - quer falar também?
Neguei com a cabeça.
– Então, esse é meu ponto, tenho que ir - levantou Alessandra.
– É o meu também, vou com você! - falou Patrícia.
   Nos despedimos, e Patrícia me passou o número dela. É perigoso o ônibus essa hora, e qualquer coisa era pra ligar. Fiquei contente que alguém se importava comigo, mas apaguei o número. Não quero me apegar.
   Restavam apenas os dois homens no ônibus, e nenhum deles demonstrou vontade de vir até mim. Até que o homem de blusa social levantou e deu sinal. Veio correndo até o final e sentou ao meu lado, fazendo cara de nojo pelo cheiro do cigarro.
– Vou contar rapidamente - disse - Estava deitado com minha esposa, quando meu telefone tocou. Era do hospital, para avisar que meu pai morreu. Ele tinha câncer. Nem pude me despedir.
   Fiquei sem reação. Então o ônibus parou e o homem foi embora. Encarei por um tempo a janela do ônibus, pensando em tudo aquilo que havia acabado de ouvir. Da história de Patrícia, de Alessandra e do moço que estava tão apressado que não pode nem me dizer seu nome. Lembrei que faltava um, o garoto de touca.
   Fiquei mais alguns minutos ali, esperando, mas nada. Levantei então e sentei ao seu lado. Conseguia ouvir o rock pesado que o garoto ouvia no celular. O menino por alguns minutos fingiu não ter me notado, até que respondeu furioso:
– Não vou falar com você, se toca!
   Não vou mentir que fiquei chateada com a resposta, e o garoto demonstrou ter percebido isso.
– Olha, se quer mesmo saber, fugi de casa. Briguei com meus pais e pretendo me matar.
Ótimo mais um adolescente suicida.
– Não vou falar mais nada, não é como se você fosse entender.
   Abri minha mochila e dali tirei um papel todo amassado. Era a lista.
– Você é a primeira, e provavelmente a única, pessoa que vai ver isso. É minha lista de coisas que quero fazer antes de me matar. Carrego ela para todo lugar.
Ele arregalou os olhos, e tirou os fones.
– Sabe, minha vida é uma merda. Uma merda gigante, e pelo visto, todo mundo nesse ônibus também tem uma vida merda.
– Um ônibus de merda - ele disse.
Rimos.
– Mas não quero morrer na merda. Quero morrer feliz, realizada. Ter feito tudo que eu queria, assim minha vida terá valido um pouco a pena.
   Levantei e dei o sinal do ônibus. Ele me entregou a folha, mas neguei.
– Fica com ela, eu sei de cabeça. Se quer mesmo se matar, pegue minha lista como inspiração e faça a sua. Quem sabe, quando chegar no fim, você vai se sentir melhor e desistir dessa ideia estúpida?
   Fui em direção a saída, e então o garoto levantou.
– Qual seu nome? - gritou.
– Sara!
– Samuel! - respondeu.
   Desci do ônibus. Uma suicida aconselhando um suicida que o suicídio não é a melhor opção. Seria cômico, se não fosse trágico.
   Acabei pegando um táxi - que acabou dando muito caro por sinal - e cheguei em casa. Já era tarde, e meus pais dormiam. Encontrei uma caixinha na minha cama, era um presente da minha mãe. Abri e era um colar de pérolas. Sorri e guardei no armário.
   Por fim, olhei pela janela e pensei em todas aquelas pessoas e em suas histórias, curiosa sobre o que aconteceria dali então com elas.

25/12/15 Sara Rosenstock (ansiosa pelas próximas 36 coisas e Feliz Natal!)

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