"Eis que o Diabo fitou-me, fazendo desejar profundamente minha morte..."
Nunca esquecerei o dia que conheci meu primo Lucas. Mesmo eu sendo muito nova na época, até que ainda consigo me lembrar com detalhes, cujos detalhes por mais que sejam dolorosos, dos quais nada vou omitir aqui neste meu relato que mais é um desabafo, um testemunho. Numa tarde de sábado ensolarada fui com meus pais visitar a casa onde moravam minha Tia Lúcia e meu Tio Borges. Por mais que tivesse um ar de lugar melancólico, os meus tios que eram muito felizes, conseguiam fazer que a casa número 33 da rua Barão da Conceição tivesse um pouco de vida. Um casal perfeito e invejável, eram muito bem resolvidos e estabilizados financeiramente e por mais que já estivessem tanto tempo juntos mostravam um amor e carinho de um casal de jovens apaixonados.
Meus tios se encontravam muito felizes com a chegada do pequeno Lucas, aquela coisinha que mais parecia de brinquedo, fazia leves movimentos lentos com as mãos e cabeça fazendo parecer que não via a hora de explorar esse curioso mundo novo no qual ele se enfiara. O motivo da felicidade do casal é bem óbvio, já que das quatro vezes que minha tia Lúcia ficara gravida essa era a primeira vez que ela não abortara. Mesmo tendo uma gravidez muito complicada, o pequeno Lucas, com muita dificuldade e trabalho duro dos médicos, veio à vida com uma saúde não muito forte se comparada com outras crianças, a explicação se cabe aos tormentos que minha tia Lúcia sofrera em seu período de gestação: meses de muito sofrer.
Entre o quarto e quinto mês de gravidez, minha Tia Lúcia sofria com pesadelos que se repetiam muitas vezes na mesma noite, durante noites e noites seguidas fazendo-a ficar muito nervosa, chorosa, descontrolada e abalada emocionalmente, perdendo muitas noites de sono. Das vezes que conseguia uma pequena parcela de sono, acordava aos berros rompendo a paz noturna, aos prantos na calada da noite, onde meu tio Borges com todas suas forças, amor e paciência, fazia de tudo para acalmar a pobre tia Lúcia, que quando conseguia voltar ao seu estado emocionalmente normal, repetia soluçando levemente como era o seu pesadelo que se repetia muitas vezes: seu terrível sonho se baseava com um homem alto a magro que se vestia todo de preto, onde a única coisa que ela conseguia enxergar de sua face era seu sorriso, um sorriso amarelado, gélido e grande, cuja boca deixava saltar aquele amontoado de dentes todos pontiagudos e ferozes como um ameaçador animal selvagem. A presença deste ser resumia-se no ato de que ele roubara um bebê dos braços de minha tia Lúcia, que ela mais que sentia, SABIA, que aquele era seu filho, que era levado para uma escuridão pelo estranho ser macabro, entre aquelas mãos grandes, estranhas e finas que mais lembravam garras do que mãos. Uma tortura, já que ela não conseguia gritar e nem mover um músculo para deter aquele ser sinistro. Era aquele tipo de pesadelo onde todos nossos esforços são em vão fazendo disso uma experiência altamente penosa e desgastante.
Entrando na casa que era um tanto quanto grande, fui erguida rapidamente nos braços de meu tio Borges que me girou no ar me fazendo gritar e rir muito. Logo fui beijada pela minha tia Lúcia, que estava um tanto fraca, onde seu olhos cor-de-mel mostravam que tinha passado por um longo período sem descansar. Depois dos adultos se cumprimentarem sorrindo muito, subimos as escadas e nos dirigimos ao quarto do pequeno Lucas. Ao abrir a porta que tinha o nome "Lucas" escrito em letras brancas numa placa de madeira me deparei com um quarto era extremamente lindo: suas paredes azuis muito bem pintadas davam uma cor e alegria a todo o ambiente onde contrastavam com uns detalhes de gesso muito bem distribuídos em formato de nuvem que fazia da parede um céu. Brinquedos dos mais variados tipos por todos os cantos: carrinhos, ursos, trenzinhos, fazendo que o quarto um paraíso para qualquer criança. Bloquinhos de letras e números coloridos empilhados numa parte do quarto próxima à janela diziam "SEJA BEM VINDO PEQUENO E AMADO LUCAS". A mobília totalmente marfim trazia uma leveza e beleza angelical ao lugar cujo centro se encontrara o lindo berço onde o pequeno anjo Lucas repousava. Aquela coisinha com seu rosto arredondado estava adormecido numa serenidade incomum, onde suas pequenas mãozinhas redondas e fechadas uma sob a outra levadas à altura do rosto faziam uma alusão às esculturas angelicais que enfeitam as belas catedrais construídas no século XV.
Após contemplarmos a beleza do lindo bebê descemos para o quintal onde meus pais e meus tios conversavam coisas de adulto enquanto eu comia uns biscoitos. Percebi que minha tia Lúcia estava um tanto estranha. Num certo momento ela se levantou lentamente e seguiu em direção à casa, onde, inexplicavelmente por um instante em que eu olhava para o a janela do quarto de Lucas que dava para o quintal, pensei eu ter visto uma silhueta: não tinha nitidez, era como uma sombra, uma mancha escura e disforme que estava lá. Poderia ser apenas uma ilusão, poderia acreditar que foi a minha percepção me pregando uma peça em meio de sombras de alguns objetos cujo ângulo perfeitamente me lembrara uma silhueta de um homem, talvez. Mas hoje sabendo o que se passou ali, com aquilo que vi, seria impossível negar.
A paz foi quebrada com um grito seguido por um barulho seco vindo de dentro da casa. No desespero, todos correram para dentro imaginando a piores coisas que ali poderiam ter acontecido. Ao chegarmos nos demos conta da cena deplorável da qual minha tia Lúcia se encontrara: caída ao pé da escada que nessa mesma ela deveria ter rolado à baixo. Ao erguer o corpo dela notamos que o pequeno Lucas estava lá, provavelmente ela desceu as escadas com ele nos braços instantes antes do maldito tombo. Enquanto os adultos desesperados buscavam por socorro, eu, na mais pura inocência, senti uma vontade imensa de subir ao quarto do pequeno Lucas onde, instantes atrás, tinha avistado a sombra de um suposto homem na janela que dava no quintal. Lentamente subi o lance de escadas e atravessei o corredor em direção ao quarto onde a porta com a placa gravada o nome "Lucas" estava entreaberta. Ao empurrar a porta vi que no canto do quarto havia alguém, ou melhor algo que cuja estranha natureza eu não saberia explicar: era um ser estranho de pele amarelada onde suas veias pulsavam e onde algumas feridas abertas soltava algo viscoso como pus que escorriam até o chão criando uma poça nojenta ao redor dos seus pés. Sua cabeça grande e disforme igualmente desproporcional ao corpo raquítico, escondia-se entre dos braços, numa posição de cócoras como uma pessoa desolada. Uma voz fina entoava uma leve gargalhada onde me fez gelar a alma, foi ficando cada vez mais alta e mais alta, até que num instante onde o silêncio mortal dominara o lugar, aquele estranho ser que desse mundo não pertence, virou seu rosto onde seus pequenos olhinhos totalmente escuros como as trevas me fitou, seus pequeninos chifres na altura da testa e seus dentes tortos, pequeninos e afiados se abriram como uma cortina de tenebroso sorriso que aquela grande, estranha e deformada boca escondia. Levemente levou a aquela fina mão desajeitada até a boca, cujos dedos finos e longos terminavam numa unha grande e escura que mais lembrava uma garra, e no maior ato demoníaco fez um sinal de silêncio fazendo a porta, lentamente fechasse a minha frente.
Horas depois no hospital, minha tia Lúcia que acordou de seu longo desmaio, desesperadamente perguntou sobre o estado do pequeno Lucas. O médico, friamente, respondeu à pobre mulher que o pequenino não resistira ao acidente e falecera. Neste instante minha tia Lúcia fixou seu olhar de uma maneira gélida e estranhamente começou a sussurrar palavras estranhas que cuja natureza e significados nunca saberei. Minha tia Lúcia perdera a sanidade.
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Contos Esquecidos
Short StoryAlguns contos esquecidos de acontecimentos ̶b̶i̶z̶a̶r̶r̶o̶s̶ ̶ peculiares.