Era noite quando tudo aconteceu. Um sentimento breve, intenso e confuso tomou conta de mim, fazendo que minha mente mergulhasse nos mais profundos pensamentos sobre as coisas das quais eu nunca tinha percebido que faziam parte da minha vida. Eu estava prestes a dormir, e deitado em minha cama no pouco escuro, onde uma luz da rua entrava pela janela, cuja melancolia tingia uma parte do quarto. Projetando em minha mente os mais variados pensamentos, fiquei lá, pois o sono já havia me abandonado por dias, e por muita dificuldade eu cochilava aqui e ali, recuperando o máximo de energia que eu conseguisse. Não sabia a causa dessas insonias, pois meu trabalho não era desgastante e me alimentava de boa maneira, sem exageros e sem vícios também; o que me tornava um homem muito saudável, mas mesmo assim, à noite, não tinha paz e não conseguia dormir facilmente como em tempos atrás.
Me recordo sim, tarde chuvosa que eu voltava para casa depois de uma jornada de trabalho. Eu nunca usava guarda-chuva, apenas levantava a gola do casaco ou jaqueta, e prosseguia caminhando entre poças, goteiras e toldos. Caminhando e pensando, andava lentamente. Nos dias chuvosos as ruas ficam um tanto mais vazias e calmas do que de costume, onde pessoas como eu, aproveitavam aquele singelo momento onde a cidade, molhada, entrava em um estado de quase-silêncio para ouvir apenas o som da chuva. Enquanto eu encarava meus sapatos encharcados, vi algo na calçada, era uma espécie de papel, prossegui sem muito interesse, mas algo dentro de mim, um tipo de força ou sentimento estranho me fez voltar uns passos e verificar o que tinha naquele estranho papel. Cheio de curiosidade e motivação, voltei como se nada quisesse e me abaixei apanhando a tal coisa. A parte de trás era branca, mas julgando pela textura, pude sentir que era algum tipo de fotografia. No verso, vi que realmente se tratava de uma foto, tinha o rosto de uma bela e jovem moça, com um movimento involuntário coloquei a fotografia em meu bolso e prossegui em minha caminhada para casa.
Pelo fato de ter tomado chuva o caminho todo, tive que trocar de roupas às pressas. Preparei um banho quente e também esquentei água para o chá. Me servi depois do banho: comi pão, um pouco de queijo, maçã e chá preto. Antes estender minhas roupas molhadas, verifiquei meus pertences nos bolsos do casaco e da calça, minha carteira com documentos, um molho de chaves, algumas balas e a tal fotografia. Liguei o rádio, estava tocando jazz, me sentei em minha poltrona e acendi um charuto enquanto a analisava a tal fotografia. Se tratava de um retrato de uma mulher jovem, em torno dos seus vinte anos de idade. De fato era muito bonita, algo que não posso negar. Tinha traços fortes e ao mesmo tempo delicados, um misto de força e bondade que transparecia de sua face. Tinha sobrancelhas levemente arqueadas de forma que dava um leve toque de malícia. A boca levemente carnuda era tingida de batom de um tom vivo de vermelho sangue. Tinha o rosto levemente pálido cercado de negros cabelos e bochechas arredondadas, nariz pequeno e delicado. Mas, em todo esse conjunto fantástico que ali estava gravado, o que mais me intrigava e fascinava era seu olhar. O tal fotografo era um grande profissional, ou se caso fosse um aspirante de grande futuro ou apenas um bom momento de sorte, pois o momento da foto, que gravou um olhar grande e vívido, um olhar direto cuja duas esferas negras flutuavam naquele rosto de forma mágica e ao mesmo tempo formando um enigma do qual me levava a pensar em quem era aquelas bela e poderosa mulher. A resposta eu creio que nunca saberei por completo, uma pena. Aquela foto me encheu de grande intensidade e sentimento profundos bailavam em meu coração, era como que aquele todo que formava a tal mulher enxia minha cabeça com algumas formas abstratas e quase invisíveis. Não sei se era algum tipo de delírio ou fantasia profunda de minha imaginação fértil, mas me causava breves instantes de uma mistura de confusão e paz.
Continuei com minha rotina tediosa de jornadas de trabalho e ficar em casa nas folgas. O fato que era que nunca fui muito de ter amigos ou sair para visitar parentes, sempre preferi ficar só, me sentia melhor assim. Chegava do trabalho um pouco cansado, me alimentava e ficava boa parte do tempo olhando para a enigmática fotografia, percorrendo cada curva, sombra e traço com meus olhares ligeiros e inquietos. Me pegava algumas vezes no meio da noite com a fotografia ao meu lado, e acendia a luz para admirar e ao mesmo tempo tentar entender quais segredos fantasiosos a tal fotografia continha. Me questionava sobre a tal mulher, seus hábitos, sua voz, humor, se era casada, provavelmente por tal beleza; e outras coisas mais que ao mesmo tempo que eu pensava, uma a uma criava vida na minha mente e ia sentindo que essas essências seriam parte da tal mulher cuja apenas tenho em foto. Eis que um milagre também aconteceu, comecei a dormir com uma fraca frequência, mas que de começo já era ótimo, pois a muito não conseguia ter uma noite de paz. E nessas noites onde o sono e o cansaço por piedade se apoderavam de mim, viajei nos mais estranhos sonhos dos quais consigo me lembrar por completo, como era de costume na minha infância. Entrava em lugares que eu nunca antes tinha estado ou visto em fotografia, ambientes calmos, outras vezes agitados, mas o elemento que todos eles tinham em comum era que dado algum momento, no sonho, eu avistava distante a tal moça da fotografia que de longe sorria e acenava, e por alguma razão eu não conseguia chegar até ela. Porém, essa minha obsessão não era apenas no sonho: eu caminhava muitas vezes olhando ao meu redor, procurando por algo que não sabia ao certo se perdi, era apenas um sentimento estranho de estar sempre à espreita de alguma surpresa que nunca acontecia. E assim Ela foi tomando conta de mim, e me vi de uma forma como que obcecado por ela, um misto de paixões e desejos que me inflamava a alma.
Me recordo também da terrível vez em que acordei de manhã e de forma alguma eu encontrava a fotografia, vasculhei e revirei toda a casa, as mobílias, gavetas, roupas e nada. Em um momento de desespero pensei que nunca mais veria a tal foto, e sabendo disso entrei em uma grande crise emocional, e tomado por uma depressão profunda onde mal tive forças de ir trabalhar, cujo qual fiquei afastado já que todos da empresa perceberam que meu estado era frágil, e me deram uns dias para me recuperar. De forma alguma eu conseguia enfrentar aquela tristeza tamanha, era algo pesado e escuro que minha mente carregava, tendo muitas vezes alguns espasmos e faltar de ar. Varava noites sem conseguir dormir, já que apenas a imagem da musa que me trazia paz; a foto Dela, que agora tornou-se algum tipo de lembrança e tristeza. Para acalmar os nervos eu me entreguei à bebida, e de bar em bar tentava preencher aquele vazio em mim, com muitos goles e drinques. Eu secava garrafa atrás de garrafa e voltava para casa, onde eu apenas desmaiava e mesmo assim quando me recuperava me sentia pior que antes, cada vez pior. Sem esperanças, tive um estalo de lucidez da qual pouco a pouco fui voltando para minha vida comum, carregando a tal angústia que me dilacerava, mas por sabedoria ou razão tentei ao máximo esquecer de tudo aquilo, daquele surto de loucura. Voltei ao meu emprego e à rotina com a corriqueira sensação de vazio existencial.
Numa das vezes, me lembro que era perto de algum feriado prolongado, isso me daria tempo que me deixaria muito ocioso. Sem muita dificuldade arrumei uns remédios e calmantes, tudo correndo bem com prescrição médica. Os remédios eram fortes e sempre me derrubavam em minha cama. Numas dessas vezes, sonhei novamente com a tal moça lembro de vê-la de longe em meio a multidão, com muita dificuldade eu corria atrás Dela, e Ela, como costumam ser os sonhos, corriam mais do que eu me causando desespero. E assim foi a caçada pelo mundo dos sonhos: Ela virava esquinas, ruas e cruzamentos, e eu sempre em seu encalço, tentado o máximo que podia para tentar chegar perto dela ao menos uma vez. Mesmo em sonho fui percebendo que os lugares que Ela percorria eram familiares para mim, e aos poucos fui deduzindo e indagando se ela queria me levar em algum lugar especial. Ela avançou umas ruas e entrou numa casa que logo percebi que se tratava da minha. Por incrível que pareça não me impressionei com tudo aquilo, coisa de sonho, talvez. Então adentrei e segui até o meu quarto onde a porta se encontrava aberta. Lá estava Ela, assim como na foto, uma deusa, uma miragem que em forma de mulher me encarava e ao mesmo tempo me excitava. Então a janela abriu-se atrás dela e um vento forte e gelado tomou conta do quarto, e um grande raio me fez acordar. Ao despertar ainda meio zonzo por efeito dos remédios que tomei, percebi que a janela de meu quarto estava realmente aberta, fazendo um vento frio entrar. Foi então que me virei para a cabeceira da cama e acendi o abajur. Creio que nunca senti algo assim antes na vida: era uma mistura de pavor, surpresa, ansiedade, fervor... não poderia acreditar naquilo que meus olhos viam, era tudo muito confuso, meu coração acelerou e suei frio.
Estava ali, parada em minha frente uma pessoa, uma mulher pra ser mais exato, então percebi, senti aquele olhar... era Ela!
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Contos Esquecidos
Short StoryAlguns contos esquecidos de acontecimentos ̶b̶i̶z̶a̶r̶r̶o̶s̶ ̶ peculiares.