Capítulo I - Precedentes

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"Um dia do mês de um ano. Sentado na sala de embarque. A hora está próxima. A textura deste papel casa perfeitamente com a ponta da caneta a qual escrevo estes dizeres, numa folha que talvez esteja no lixo em minutos.

Pensando...

Algumas vezes, eu desejaria estar me vendo sendo o Gunther sem o caos pré-estabelecido. Provavelmente eu estaria sendo o homem com uma rotina como a de milhões. Mais um na multidão daquele mar sem fim de pessoas insignificantes em uma cidade insignificante. Ou então eu estaria sendo um senhor do campo, apenas querendo uma bela visão de um litoral num pôr do sol de verão. Um Balconista dando conselhos vazios para um alcoólatra que insistira em desabafar a sua certeza em estar conduzindo seu relacionamento conturbado de maneira correta. Seria talvez eu o alcoólatra? A complexidade, a exigência de um significativo trabalho mental que a incerteza me dá me fascina.

Outrora, disseram-me que, uma vez que o corte profundo fora feito, as cicatrizes permanecerão no lugar do que antes era pele ilesa. E eu acho que essa é a coisa mais difícil que temos que suportar por andar pelo vale da sombra da morte. Mas, sobretudo, estarei a não sangrar? As pessoas que eu amo ensinaram-me a nunca tornar-me a vítima, viver sem desculpas e lamentos, ser íntegro. Mas para ser forte, antes não é preciso viver em fraqueza?

Eu tenho sonhos, e se uma convicção me foi entregue, foi a de que o esforço de um trabalho duro pode me fazer acordar e perceber que alcançar o que estava em minha consciência enquanto dormira pode ser palpável, pode tornar-se real e isso me faz deixar de querer mergulhar numa falsa nostalgia.

Algo me diz que não existe coisa mais saudável a se fazer. É chegada a hora.

Gunther Artemiev"

●••●


— Abra os olhos, querida. — Depositei sobre sua face o que eu defini como um beijo, apesar de meus lábios nada estarem fazendo, a não ser tocar sua macia pele. — O porvir nos espera. — Olhos fechados e narinas inspirando sua inconfundível fragrância Fougére. Essência de Helena.

Primeiro uma inspiração, depois de alguns movimentos débeis e uma longa expiração, seus olhos abriram. Verde e Mel nunca se misturaram tão perfeitamente. Eles traçaram um rumo desgovernado pelo quarto até encontrarem os meus, arrancando-a um sincero sorriso. Poderia jurar que os raios solares, que outrora entravam pela janela, estavam emanando de Helena. Quão bom era acordar todos os dias e olhar para aquela mulher. Uma série de ações que eu não cansava de presenciar todos os dias.

— Bom dia — falei, enquanto estudava cada traço de seu rosto.

— Bom dia... meu querido — respondeu, ainda em meio a um sonolento sorriso.

Sua cabeça repousou em meu peito, abriguei seu corpo junto ao meu. Ao nosso lado, sobre a prateleira, o relógio revelava-nos tempo o bastante para aproveitar antes de uma maratona na cidade dos ventos, Chicago.

Final de agosto, e isso significava duas coisas, a primeira era que o verão estava a se findar, a segunda era que Lucy, nossa pequena filha, estava prestes a entrar no Kindergarten e, consequentemente, em um bom programa after school; o que significaria que, além de nossa plantinha de apenas cinco anos estar florindo, nosso tempo juntos estaria cada vez mais limitado. Isso não só doía a mim, mas também a Helena. Confirmei essa teoria logo após ela falar:

— Será que ela está mesmo preparada para isso? — Ela poderia saber que eu também pensava naquele momento em Lucy, completamente sozinha em uma creche, rodeada de estranhos e drasticamente indefesa.

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