Capítulo II - Latrocínio

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Tive o luxo de ir no banco de carona da ambulância. No volante, Carter comentava sobre qualquer coisa. Poderia supor que o proposito inicial da conversa era para ser entre mim e ele, mas em certo ponto Qian respondeu qualquer outra coisa da cabine. No final das contas, ela estava tão próxima dele quanto eu.

Algumas vezes olhamos pela janela, não com o objetivo de desfrutarmos do que está acontecendo do lado de fora, mas sim para descobrirmos o que se passa dentro de nós mesmo, em nossa mente. E lá eu estava, em uma sessão com meu eu interior. Talvez as árvores e prédios que passavam junto com as milhares de feições que talvez eu nunca veria uma outra vez ofereciam a calma que meu cérebro precisava para falar com uma voz que fizesse mais sentido que as buzinas daquela movimentada avenida. Por um momento eu recriei mentalmente a cena de minutos antes, enquanto Helena berrava de um lado e eu de outro. Coloquei Lucy entre nós. Não aguentaria tal embaraço ao ver o olhar aborrecido de nossa filha.

Grande exemplo. Era isso o que eu estava disposto a ser para as duas mulheres da minha vida.

Só consegui me libertar de meus devaneios porque o freio da ambulância lançou levemente o meu corpo para frente. Antes de me ver livre do cinto de segurança, Carter pousou sua mão direita sobre meu ombro.

- Tem certeza que está bem? - Estudei por um momento aquele gesto. A aliança polida em seu anelar me fez entender que ele estava noivo, logo, era habilitado a reconhecer o motivo de meu atual estado.

- Vai ficar - eu lhe disse. Ele deu dois singelos tapinhas em meu ombro e me viu mostrar-lhe um sorriso amarelo antes de descermos da viatura.

Fechei os olhos e inspirei profundamente. Oxigenei bem meu cérebro. Será que seu eu respirar com força, todo esse misto de apreensão e inquietação sairá junto com o ar e se dissipará no vento?"

Tracei uma rota tal até o vestiário, que não vi sequer o rastro de um membro do esquadrão. Liguei o chuveiro e deixei a água fria levar as cinzas que ainda restavam em meu corpo. Observei o caldo sumindo ralo adentro. Abaixei minha cabeça, deixando minha nuca sob o jato e, por segundos, ali permaneci em reflexões. Após sair do banho, encarei o melancólico Gunther de toalha no espelho. Ao menos a lâmina de barbear não deixou uma marca aparente em meu queixo.

Enquanto pegava o uniforme, vi meu aparelho celular escorregar por entre o tecido. Só teria uma pessoa capaz de fazer meu estado de espírito dar uma volta de 180º naquela hora. No papel de parede, uma foto sua. Lembrava-me claramente quando a tirei. Seu sorriso me contagiou como no dia em que eu o capturei. Digitei seu número, seria a primeira vez que ela de fato usaria o aparelho, e, depois de alguns segundos, escutei sua voz doce:

- Alô, papai? - Quão incrível é o poder das palavras. Senti meus lábios arquearem involuntariamente para cima.

- Olá, filhinha.

- Papai, papai! Eu consegui. - A empolgação em sua voz fazia-me idealizar nitidamente sua feição. - Estou te ouvindo!

- Sim, você está. - Eu ria, enquanto escutava vozes de crianças ao fundo, no outro lado da linha. - E eu também.

- Você está bem, papai?

- Sim, querida. Estou bem. - "Agora sim", pensei.

- A sra. Anderson é legal, mas ela não deixa eu usar o celular por muito tempo. - Pude escutar o tom de sua voz abaixar sutilmente. - Ela está me olhando agora, papai - sussurrou. - Acho que de trás do armário ela não me descobre.

- Não precisa se esconder, querida. - Hesitei, enquanto procurava uma justificativa. - Eu só queria te dizer que o papai está feliz por você estar indo tão bem. Nos falamos melhor mais tarde. Seja obediente. - Eu sabia que ela seria.

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