Outono.
Talvez uma das melhores épocas do ano, tirando é claro, a primavera. Não faz tanto frio quanto no inverno e nem tanto calor quanto ao verão, é uma mistura de ambos, que na opinião de Vitória, poderia ser a estação por todos os trezentos e sessenta e cinco dias do ano, ou, os trezentos e sessenta e seis, quando fosse bissexto.
Se fosse noutro ano ela estaria feliz, comemorando com a chegada da estação, mas não naquele ano, não agora.
Seu pai, que já tinha alguns fios grisalhos lhe fazendo companhia, duas semanas atrás havia lhe entregue uma notícia — Sua irmã tem câncer em estágio avançado e de rápida deterioração. — Foi o que ela ouviu sair da boca dele, assim mesmo sem nenhuma prévia, não fazia seu estilo pegar leve com as palavras, tal coisa pertencia a sua querida mãe. Dona Nina.
Ela tinha em seus olhos no momento da notícia um livro afundado na cara, perdia-se tão facilmente dentro de suas linhas que quase esquecia do mundo ao lado de fora.
Sua pele ficou pálida, diferentemente do branco amarelado que era seu tom.
‘‘O... Oque?’’ — Balbuciou.
‘‘Câncer’’
‘‘Estágio avançado’’
‘‘Rápida deterioração’’Logo ela deduziu a única palavra que que formava tudo àquilo — MORTE.
O livro de capa escura e sem brilho que segurava entre os dedos caiu, deixando seus olhos que eram protegidos por óculos fossem inundados em lágrimas.
O pai então saiu.
Saiu da porta na qual havia se estacionado e fôra até o seu quarto. Vitória sabia que por mais que por fora o senhor Richard fosse como uma pedra, ao lado de dentro era de puro amor pela família, por cada uma das três mulheres da casa.
Nina, a mãe. Emília, a caçula e claro, ela própria.
Franziu o cenho e ficou sem reação, não conseguiu fazer mais nada, não com aquela notícia lhe batendo na cara.
De um impulso quase que involuntário, Vitória se levantou da cama, tirando de cima de si o edredom de cor rosa claro e indo até a direção do quarto de seus pais, poucos metros dali.— Pai! — Ela o gritou. — Me explica isso direito.
— Vic. — A chamou por seu apelido de tantos anos, olhando com um semblante abatido e com uma voz gasta. — Não podemos falar disso outra hora? Sua mãe já está chegando com a Emi do hospital, no jantar nós iremos conversar sobre tudo, está bem?
— Não. Não está nada bem. Eu preciso saber agora. Sei que a Emília estava com dores de cabeça forte esses dias, mas como assim, câncer? — Falou confusa.
— Filha, sua irmã está doente e está muito mal. Sabe que eu não sou bom para falar dessas coisa, sua mãe logo vai chegar e te explicar tudo. Agora por favor, eu preciso entrar para tomar um banho.
E assim ele entrou, já segurava a toalha de banho muito antes dela chegar lá, e como o mesmo disse, não era bom com aquelas coisas, não como a mãe.
A pequena menina de um metro e sessenta e cinco saiu brava, martelando o pé no assoalho como se quisesse destruir a casa. Por mais que tivesse acabado de atingir a maior idade, seus dezoito anos não lhe prepararam para perder a única irmã que tinha, aquele que apesar de ser três anos mais nova, talvez fosse a mais forte entre ambas.
Suspirou firme, e então caminhou até a janela de seu quarto.
Do andar de cima dava para ver todo o bairro, era sexta feira e os vizinhos estavam na rua, a maior parte pelo menos. Os olhos claros já cheios de lágrimas apenas às deixou escorrer após um leve sopro de vento tocar em sua pele, era um vento típico de outono, frio.
E assim, duas semanas haviam passado, e como era costumeiro em todos os anos, a família viajou para a casa do lago, longe de toda a perturbação da cidade, longe de tudo, apenas perto o bastante do lago de águas frias e de um bosque um pouco mais adiante.
Emília ouvia música durante a viagem inteira, e ela também, mas, diferente da irmã que estava ao seu lado no banco de trás do passageiro, Vitória apenas fingia escutar, já que os fones de ouvido apenas quebravam para si mesma o silêncio que se formou dentro do carro. Com os olhos pregados acima de si, ela olhava atenta ao céu de cor azul.
A mãe, que ao lado do pai se estava, tocou em sua perna, querendo lhe puxar de seus devaneios, já que era visível que Vitória não a tinha escutado das três primeiras vezes que ela a chamou.
— O que foi? — Sua voz saiu ríspida, e aquilo não era normal, seguidamente olhou para a mãe de novo e repetiu a pergunta, agora num tom muito mais doce. — O que foi, mãe?
— Já estamos chegando, querida. Se importa de ficar em casa sozinha por umas duas horas?
— Porque? A onde vocês estão indo?
— O padre Sebastián marcou conosco, pediu para irmos lá assim que chegássemos. Tudo bem por você?
Ela perguntou, ainda com seu corpo virado na direção de trás, olhando para as duas filhas com aqueles seus olhos ternos.
— Agora estamos procurando por ajuda de Deus também? — Ironizou.
Deixou um riso de sarcasmo estampar sua feição. A mesma não acreditava que existisse um Deus, e após o que houve com a irmã apenas ficou mais descrente.
— Vic, para. — Emília pediu, notando que a irmã mais velha brincava com a fé de sua mãe. — Se você não acredita tudo bem, mas nós iremos lá ver o padre Sebastián.
— Tudo bem, não me importo.
E assim a mãe se virou outra vez para frente, ainda com o sentimento de fé sendo sua única esperança para salvar a filha mais nova. O carro andou por uns cinco minutos a mais e então chegaram na casa.
O pai sequer saiu do carro, na verdade a única que saiu fôra ela, Vitória. Os outros três apenas se despediram e prometeram não demorar.
Ela caminhou, e atravessando o jardim de flores exuberantes, chegou até a porta.Subiu os três degraus de madeira que dava acesso a casa. Sua mochila era a única coisa que tinha junto a si, e com a chave já em sua mão, abriu a porta e adentrou ao lar que os recebiam ao menos duas vezes por ano.
Jogou a mochila de tom escuro no sofá e foi até o banheiro lavar o rosto, queria tirar a cara de cansada que teve durante toda a viagem.
Entrou no cômodo e afundou o rosto naquela pia de porcelana branca, a água já havia enchido o suficiente para ela se lavar.
A maquiagem que tinha no rosto então saiu, a cara dela era limpa naquele momento. Com os olhos azuis pregados em frente ao espelho que tinha acima da pia ela ficou, apenas relembrando de tudo, torcendo no fundo de seu coração que a irmã melhorasse, até mesmo naquele instante acreditando que existia um Deus bondoso que a livraria daquele pesadelo.
Voltou a jogar água outra vez no rosto logo após formar uma poça em suas duas mãos, como uma concha. E por fim secou o mesmo com uma toalha que tinha pendurada. Seus olhos ainda fixados no espelho apenas refletiam o que ela era naquele momento, um bocado de sentimentos ruins.
Talvez estivesse sofrendo mais do que a própria irmã que tinha a doença. Sua boca deixou se formar um riso de canto e em sua mente apenas uma frase se repetia sem parar.
‘‘Se Deus existisse ela não estaria assim.’’
Era tudo que dizia para si mesma, duvidando que segundos atrás havia cogitado a idéia de um Deus que fosse bom.
Com o peito afundado em amargura, Vitória então gritou, ela gritou com todas suas forças, talvez fosse aquele o único jeito de diminuir a dor que sentia. Olhou mais uma vez para o espelho e saiu, querendo assim desfazer a mochila e comer alguma coisa.
Desligou a luz do banheiro e foi embora, todavia ao apagar da luz e em meio a penumbra que havia ficado aquele lugar algo aconteceu. O vidro se quebrou bem ao meio de uma só vez, o que fizera ela dar meia volta ao escutar o estalo. Acendeu a luz num só golpe no interruptor e então viu algo que jamais se esqueceria — Uma mulher de olhos negros como o céu noturno e de pele tão pálida quanto poderia. A mesma sorria para ela, num riso estranhamente assustador, porém a tal mulher no espelho era ela.
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Não Conte Aos Espelhos
HorrorQuem nunca falou sozinho em frente ao espelho? Desabafando ou simplesmente falando coisas sem sentido algum para o seu próprio reflexo? Na intenção do seu próprio "eu" interior te escutar? E se eu te contasse que as vez, o seu "eu" interior te escut...