Flamme

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Eu sabia que não conseguiria dormir. Depois de retornar, acordar e despachar Russell a muito custo, pude refletir durante algum tempo. Viktor Herrmann... Aqueles olhos azuis... Será que eu voltaria a vê-los de novo?

Dois minutos para as cinco da manhã, ainda era madrugada, mas eu já estava acostumada a acordar cedo assim. Fui em direção ao closet, escolhendo um dos pares de fardas, o que parecia estar mais arrumado. Basicamente, possuíamos muitos uniformes, mas o usual era o cáqui, que consistia em uma saia verde, com uma costura frontal; um cinto amarronzado de fivela dourada; uma blusa bege de abotoar; com dois bolsos frontais rasos e uma plaqueta de identificação, na qual meu nome estava esculpido. Eu a fixava no bolso direito. Utilizava também um salto de couro à moda antiga, que precisava ser engraxado diariamente, e uma boina francesa verde.

– Filha, você já tomou os remédios? – indagou mamãe, aparecendo ao lado da porta. Ela sempre fazia questão de lembrar-me dos meus medicamentos.

– Sim, já tomei; irei à cozinha comer alguma coisa – respondi agradecida pelo fato de ela não haver suspeitado em relação ao dia anterior.

– Tudo bem – retrucou, retornando ao seu quarto.

Apanhei minha mochila e passei pela cozinha, mordiscando uma fatia de queijo mozzarella e prendendo minha cabeleira ruiva em um rabo de cavalo, mais uma regra do colégio. Escancarei o portão, empurrando minha bicicleta velha e enferrujada para a estreita ruazinha ladeada de pedras. Pus a mochila nas costas com dificuldade e comecei a pedalar. A corrente da bicicleta produzia um rangido esquisito, como um assobio desafinado de flauta, mas eu gostava daquele som. Eu amava tudo sobre aquele momento, pedalar sozinha, o vento frio no rosto, a melancolia, o nascer do sol, tudo mesmo. Eu me sentia a dona da cidade, como se pudesse fazer qualquer coisa.

Em cerca de 20 minutos, cheguei ao portão da Escola. Estacionei minha bicicleta na calçada e saí em direção à entrada, que mais parecia um corredor polonês, onde os sargentos, majores e soldados repousavam olhares sobre mim, investigando-me de cima a baixo, checando cada ínfimo detalhe do meu uniforme. Um sapato sem graxa, uma saia sem cinto, qualquer falha dessas e eu teria meu nome anotado, o que implicaria uma bela advertência. Duas anotações seguidas e eu teria de passar o final de semana marchando no colégio. Felizmente, nunca aconteceu comigo.

– O que diabos aconteceu ontem? – interpelou Russell, aparecendo ao meu lado subitamente.

– Está tudo bem agora – repliquei. Sempre acham que gosto de fazer suspense, mas na realidade, tenho preguiça de falar mesmo.

De repente, o som de um apito bem próximo ao meu ouvido se fez presente. Era bem do seu feitio.

– Não acham que estão próximos demais um do outro, senhora 017 e senhor 043? – ironizou a sargento Mellina, pondo-se à nossa frente em seguida.

Havia um sistema de identificação em nosso colégio que utilizava, simultaneamente, nomes de guerra e números para registrar e reconhecer um aluno. Durante a matrícula escolhíamos um nome e recebíamos um número individual de dois, três ou quatro algarismos que correspondia à nossa identidade lá dentro.

– Sim, senhora, sargento – respondeu Russell, afastando-se de mim.

– Ótimo – disse ela, sorrindo satisfeita – Agora, ponham-se em formação na alameda. 017, turma a seu comando.

A Escola Militar era uma base gigantesca em Moscou na qual adolescentes eram recrutados e educados de acordo com a disciplina do Exército. Não recebíamos treinamento de guerra, o mesmo era uma opção facultativa pela qual era possível optar após os 18 anos e não éramos oficialmente considerados soldados. Para tornar-se aluno, era necessário obter elevada colocação em um concurso nacional extremamente seletivo e, em troca, receberíamos educação de qualidade por uma mensalidade mínima.

O Pacto - Saga ElísiaOnde histórias criam vida. Descubra agora