Jagwa Hovy: a chegada do Jaguar Azul

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"Nosso Irmão Mais Velho pediu suas insígnias ao Pai. Ele as deu ao filho e desapareceu da sua vista, para impedir as coisas más. Pois frequentemente o Jaguar Azul rosnava". 

CLASTRES, Pierre: A fala sagrada.


Nos tempos eternos, Nhanderurusu surge como o primeiro. Em meio às trevas seu peito brilha, ele resplandece. Antes de criar a Terra fez a escora para firmá-la: a yvy-ita, os paus cruzados, os suportes da Terra.

Para isso, colocou uma viga no sentido do nascimento ao pôr-do-Sol e por cima desta uma outra, no sentido Norte-Sul. Depois, poderosamente se colocou sobre o ponto do cruzamento. Então, à uma ordem sua, os quadrantes se encheram de terra dando início ao solo, ao lugar da fixação da vida.

No entanto, ainda que a Terra estivesse no começo, Nhanderurusu estava, com os paus cruzados, estabelecendo também o seu fim. Pois, quando a Terra tivesse de ser destruída, segundo seu comando e ordenação, isso se daria com Ele movendo uma das vigas. A inferior, que ele puxaria lentamente no sentido Leste-Oeste. Abrindo as grandes cavidades e liberando o fogo do centro da Terra. Este seria o segundo sinal do fim...

E era isso o que estava acontecendo.

* * * 

Gwyra Poty sabia que o momento chegara. Reuniu sua família e começaram a extensa caminhada para os lados do Sol nascente. O destino: chegar às grandes águas.

A viagem seria longa. Uma jornada de muitas luas. Chegaram a ficar muitos dias, ou até meses em um mesmo lugar, onde levantavam uma casa tosca, faziam roça. Depois voltavam à caminhada.

No entanto, chegou um tempo que não dava mais para permanecer muitos dias em um só lugar. A destruição prosseguia, o braço inferior da cruz continuava sendo movido.

O fogo subterrâneo se erguia, começava a devorar o subsolo a partir das bandas do ocidente. O fim iria alcançá-los, não muito depois desses dias, se se detivessem mais tempo. Então, partiram definitivamente, sem mais paradas demoradas. Sem mais roças, plantações ou taperas. Eram sustentados por "Aquele que ia na frente orientando o caminho", se alimentando do que ele milagrosamente encontrava. Na verdade, sabia-se, que ele tudo criava pelo seu poder mágico.

E assim eles chegaram ao mar.

Agora tinham que construir uma casa de tábuas, que seria o abrigo para não sucumbiram às águas que inundariam tudo. Essa era a ordem, essa era a orientação.

__ Ajuda-nos Juperú. – Pediu Gwyra Poty ao chefe do povo das grandes tesouras.

__ Não – ele respondeu. – Eu vou fazer uma canoa para mim e minha família.

__ Precisamos de sua cooperação, Suruvá – suplicou ao outro líder de clã.

__ Não. Eu não acredito que essa grande água venha. Quando ele vir, eu ajudo – ele respondeu.

__ E você, Ypê Gwasu, grande condutor do povo dos grandes patos, pode nos ajudar?

__ Não – ele respondeu. – Eu não preciso de uma casa. Tenho asas posso voar. Sairei ileso com minha família quando o fim chegar.

Então Gwyra Poty e os filhos trabalharam dobrado. Incessantemente. Incansáveis. E finalmente acabaram.

__ Vamos voltar à dança da pajelança – disse Gwyra Poty aos filhos. – O fim está próximo.

* * * 

As labaredas do fogo subterrâneo já haviam alcançado à superfície. E mais um trecho da Terra desmoronou

* * * 

E veio o dilúvio. A água do mar se ergueu como uma muralha, em uma grande onda que cobriu toda a Serra do Mar. Alcançou a escora incandescente esfriando-a. Isso também era plano do Grande Deus Nhanderurusu. Pois pretendia reconstruir a Terra mais uma vez, em um novo mundo.

* * * 

Aqueles que se negaram a ajudar Gwyra Poty e seus filhos, na construção da casa onde se salvariam, estavam agora agitados, em pânico:

__ Corram, filhos. Peguem os machados, vamos fazer uma canoa – dizia Jyperu.

Mas não houve tempo, uma onda os tomou. Um tsunami de espuma e água. Sua alma entrou num pássaro e até hoje voa e grita todas as manhãs: "Jyperu! – tragam um machado!".

Suruá, quando reconheceu que a água realmente veio, descobriu que era muito tarde. Foi tragado por ela. Morreu afogado. Os deuses, com pena, ainda o transformaram em pássaro. E seu canto soa como as águas tomando um vasilhame de barro, enchendo-o.

O Ypê Gwasu, aquele que tinha asas, também tentou se salvar. Saiu voando. Mas o desespero de todos que ainda permaneciam no solo, que era tomado por água, era tão grande que grudaram nele, derrubando-o. Ele foi devorado pelos animais aquáticos. Sua alma, após determinação dos Eternos, também entrou em um pássaro.

* * * 

Gwyra Poty estava em sua casa. A que ele construíra com os filhos. Mas essa também foi tomada pelas águas que a submergiam. Gwyra Poty temeu e tremeu. Começou a chorar. Subiu sobre o telhado.

Sua esposa foi mais forte, mais corajosa e não parou de cantar. Não parou de entoar a reza, a dança ritual. Quando, enfim, as águas alcançaram os seus joelhos e já não era mais possível bater a taquara no solo e produzir o som oco, que agrada e apazigua os deuses, ela passou a bater contra o esteio. E não interrompeu o canto.

Guyra Poty, de posse das penas dos pássaros que pousavam em seus braços, se enfeitou, enfeitou o ser maracá. Então, em voz intensa e tomada de fervor, entoou a reza mais forte. A casa se desprendeu e flutuou.

Assim, eles subiram aos céus. Os portais celestes se abriram e a casa atravessou com eles dentro.

Imediatamente após isso, as águas chegaram aos céus, mas eles estavam salvos.

* * * 

No patamar mais alto dos Céus, na morada de Nhanderuvusu, deitado sob sua rede, Jagwa Hovy, o grande Jaguar Azul, se mexe ansioso. O Nosso Grande Pai o detém. Ainda não é chegada a sua hora.

Ele aguarda o comando do Deus Primeiro, para se arremessar contra a humanidade. E quando ele descer, nem o mais aguerrido guerreiro, conseguirá escapar de sua ferocidade.

Mas seu canto será ouvido primeiro....

Seu canto o precederá.


Kerana e os sete monstros lendários (contos) 🏆 Wattys2016Onde histórias criam vida. Descubra agora