As pinturas perpassam seus corpos, em uma sequência de retas, losangos e triângulos, denunciando serem eles da etnia Apinajé. Chamados assim pelos povos vizinhos, esta não é a sua autodenominação. Eles insistem por outras designações, todas elas derivadas do termo hôto, que significa "canto" e se refere ao seu território tradicional, localizado no "canto" formado pela região de confluência dos rios Araguaia e Tocantins.
Habitam assim, os cerrados com seus amplos horizontes. São andarilhos e corredores natos e movimentam-se, com destreza, pelas matas, cerrados e campos. Conhecem cada árvore, gramínea, cipós, plantas rasteiras. Sabem dos frutos, raízes, folhas e seivas, bem como dos alimentos e remédios obtidos das plantas. Conhecem os animais, os rios, córregos e cachoeiras, os montes e cavernas. Sem cerâmica, sem agricultura desenvolvida, sem tecelagem, eles são, em sua essência, caçadores-coletores. Sua agricultura se resume, apenas, em um cultivo centrado em tubérculos
A exatidão sequencial extrema dos enfeites e adereços usados pelos rapazes e moças adolescentes, nos evidentes e ardentes rituais de iniciação, os homens nus, as toras de corrida espalhadas pelo pátio da aldeia, são mostras de como prezam em conservar, com rigidez e inflexibilidade, o seu sistema ritual e a estrutura social e cultural.
Ali é o seu lar, sua casa. É onde estão os seus vivos e mortos, o presente e o passado. Nesse espaço território, seu valores são repassados nos diferentes momentos, nas festas e rituais, na beira do fogo e nas caçadas e, quando dormem, em seus sonhos. E foi ali que ouviram deles: os outros. Os Kupẽ Dyeb, os índios morcegos, que só saíam para as caçadas à noite.
Essa estranha sociedade seria uma tribo indígena distinta, que habitaria as desconhecidas e escuras cavernas, da temida montanha, próxima ao rio Araguaia, cujo sopé era território de caça Apinajé. Segundo os relatos, dos poucos que saíram vivos de encontros com esses seres, os Kupẽ Dyeb teriam pele escura, seriam de pequeno porte mas possuidores de grande força física e excelente olfato. As histórias narram também que, às vezes, eles deixavam pessoas entrarem em suas cavernas, mas estas, jamais, saíam de lá.
Constantemente se via sinais deles. Restos de animais sem sangue, pelos, penas e morcegos que perseguiam os que, imprudentemente, saíam à noite. Chegava-se a ouvir grunhidos e gemidos, e os últimos suspiros de morte. Em noites demoradas, mais escuras e silenciosas, quando não se via nenhuma claridade, era possível ouvir o bater de suas enormes asas, sobrevoando a aldeia, as cabanas. Se alguém tivesse coragem de olhar pelas frestas, podia vê-los: fortes e escuros. Subiam e desciam assustadoramente, e sempre tinham consigo os poderosos machados de pedra, em forma de meia lua, com os quais degolavam pessoas e animais.
Decidiram, em conselho de chefes e guerreiros, em canto e dança ritual, que era preciso colocar fim nos funestos atos. Antes que mais desaparecimentos se efetivassem, ou que a comida ficasse escassa e os deuses os castigassem.
Os homens Apinajé traçaram a estratégia, decidindo-se por cercar as entradas das cavernas, que eram uma na parte baixa da montanha e a outra localizada no alto da serra, e exterminar a estranha tribo. A estratégia era simples, mas presumia-se eficaz. Assim, no dia determinado, se dirigiram à montanha, em um grupo enorme. Todos os homens adultos em condição de caminhada e luta, armados com arcos, flechas e lanças. Com sua pintura renovada e o cântico ritual na mente.
Chegaram ao sopé da montanha, dividiram-se em dois grupos. Parte deles foi enviada à segunda saída. No entanto, com medo da noite pegá-los ali, antes da chegada dos guerreiros ao alto de serra, os homens que se encontravam na parte baixa, colocaram palha seca na entrada da caverna e atearam fogo. Sem nenhum dos homens na outra entrada, no alto da serra, os homens-morcegos voaram, fugindo em bando, em direção ao rio, sumindo sobre o Araguaia.
Um só corpo foi encontrado, um senhor idoso. Caído logo após a entrada, morto, talvez por asfixia antes de ser queimado. Um tanto baixo, mas forte e com uma machadinha de pedra lunar nas mãos. Não tinha mais asas, elas foram consumidas com o incêndio. Do ataque, os índios apinajé recolheram uns poucos machados e adornos.
No entanto, antes de abandonarem o local, os xamãs que acompanhavam o grupo, resolveram entrar na caverna para observá-la. Notaram, em um canto, uma pedra encostada na parede, que removeram. Encontraram um filhote dos Kupẽ Dyeb, ainda novo, suas asas ainda não haviam se desenvolvido. Não conseguira fugir com o bando.
Levaram-no e decidiram-se por criá-lo. Mas, na aldeia Apinajé, o menino não dormia, não comia, sempre encolhido no chão. Sempre triste, olhar perdido. Fizeram para ele um poleiro onde o colocaram. O pequeno ser agarrou-se com as pernas na madeira, virou-se de cabeça para baixo e dormiu. Só conseguia dormir pendurado de cabeça para baixo.
...
O pequeno Kupẽ Dyeb, assustado, se encolhia cada vez mais no canto. Sua mente era um emaranhado de tudo que passara em sua pequena vida, de cinco ou seis anos. Se lembra de quando eles eram, ainda, uns dez a quinze. Se lembra das tias, tios, das duas irmãs, pouco mais velhas que ele, e da mãe, sempre assustada.
Ainda sente na alma, no corpo e até em um amargo na boca, o que foi aquele dia, quando a tribo do povo branco, armados com armas mortais, os encontrou de novo, os encurralou e matou o resto deles. Se lembra do sangue, dos gritos das irmãs, quando sendo violadas e mortas, dos últimos suspiros. Só sobraram seu avô e ele. Então, quando os urubus já comiam os restos dos seus, seu avô conseguiu se levantar, pegá-lo pela mão e tirá-lo dali. Desde então nunca mais falou, nunca mais brincou. Seus sonhos tornaram-se em pesadelos de sangue, estupros e morte.
Se mudaram, fugiram, sempre se escondendo durante o dia e andando à noite. Finalmente, acharam as cavernas. Se acostumaram a dividi-las com os morcegos, ou talvez, os morcegos as dividiam com eles. Por medo, passaram a ser como eles, dormiam durante o dia, saíam e caçavam à noite. Evitavam o fogo, pra não produzirem fumaça, comiam frutas, e alguns animais que conseguiam nas noites mais claras, ou peixes, que pescavam no silêncio noturno.
Até àquele dia, quando o último ataque aconteceu. Os morcegos conseguiram fugir. Tinham asas. O avô não. Morreu queimado. Mas antes, o pegou e colocou no alto, em um buraco no teto da caverna, pra que ele fugisse na pequena abertura, no alto da montanha. Mas não deu tempo e foi capturado...
...
Os Apinajé contam, que ele passou a alimentar-se. Gostava de pipoca, que era estourada na areia e cinza quente do fogo. Ele as pegava e, enquanto cantava um triste canto, espalhava-as num círculo no chão. Ao terminar o lamento em forma de música, dizia "uuuuhhhh"!, juntava todas as pipocas num único monte no centro do círculo.
Uma vez o encontraram deitado no chão cantando uma canção de sua tribo, com as mãos no pescoço, e disse que era assim que sua tribo dançava. Mas o pequeno não sobreviveu muito mais... Nem teve tempo de desenvolver as asas. Acabou morrendo de tristeza pouco tempo depois.
Até hoje os índios Apinajé cantam a canção dos Kupẽ Dyeb em sua memória.
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Kerana e os sete monstros lendários (contos) 🏆 Wattys2016
Fantasy🏆 OBRA VENCEDORA DO WATTS2016 🏆 As histórias são antigas. De tempos eternos, imemoriais, passadas de geração a geração em determinação sagrada, ordenadas por deuses. Deveriam falar delas reunidos à beira do fogo nas manhãs, em dias frios, ou em...