Rapidamente tudo começou a desaparecer. Cátia permanecia de olhos fechados; contudo, se os abrisse, veria uma cena no mínimo memorável. Tudo sumia feito fumaça. O quarto, seus móveis. As roupas, as fotos, os enfeites…Até os cacos do vidro que Cátia quebrara há instantes. Tudo se diluía aos poucos, perdia-se no espaço e tornava-se fumaça. A jovem continuava a dormir tranquila, enquanto seu quarto girava em torno do próprio eixo e perdia a forma. Após um tempo, a densa fumaça começou a rarear. À medida que a fumaça se desfazia, a claridade tocava o corpo de Cátia, ainda imóvel na cama. Assim, quando a fumaça se desfez por completo, a moça abriu os olhos, despertando de um sono renovador. Seu corpo sentia-se bem, estava disposta e cheia de vida. Tudo parecia bem, exceto pelo fato de ela não se lembrar quem era. A jovem abriu os olhos e vislumbrou o aposento em que estava. Era um quarto estreito e comprido, cinza, frio, sem brilho. Estava deitada em uma cama, onde, aparentemente, estivera dormindo por tempo indeterminado. A cama estava vazia, e a moça pôde perceber que sentia um tremendo frio, não apenas pela falta de cobertas, mas também porque estava nua. Ela olhou alguns instantes ao seu redor, achando tudo curioso. O quarto cinza tinha apenas um guarda-roupa, com portas abertas, e ela percebeu que havia um único traje em seu interior. Não havia janelas, apenas uma porta ao final do aposento comprido. Fora a cama e o guarda-roupa, havia também uma mesa de centro, próxima à cama, e sobre ela repousava uma bonita e adornada caixa dourada. A cor da caixa resplandecia aos olhos de Cátia, mas não era o que mais chamava a atenção naquele local. Em uma das paredes laterais do quarto, havia um espelho. Ele era grande e de aparência velha e repugnante. Entretanto, parecia chamá-la. Era como se uma voz inaudível a convidasse a ir até lá. Ela caminhou primeiramente até o guarda-roupa e vestiu o traje que lá se encontrava. Era uma longa veste dourada, com bordados maravilhosos em suas extremidades. Parecia a roupa de uma rainha. Em seguida, caminhou até o espelho. Emitiu um grito de pavor. Embora não se lembrasse claramente da própria fisionomia, tinha certeza de que contemplava a si própria. Contudo, estava ao fundo do espelho repugnante, sentada a um canto, encolhida, parecendo sentir frio e medo. A imagem no espelho não correspondia às feições e aos movimentos de sua imagem real. O objeto ia do teto ao chão do quarto, era realmente horrível de se ver e, pelo que Cátia pôde perceber, possuía uma vasta profundidade. Como se estivesse perdida em um espaço infinito, ela estava sentada no interior do espelho –abraçando os próprios joelhos e fitando o vazio. Na imagem, vestia uma roupa cinza, sem vida, seus cabelos estavam bagunçados, e tudo ao seu redor era sujo e pálido. A moça andou pelo quarto, observando o espelho de ângulos diferentes. Contudo, a imagem permanecia na mesma posição. Estaria imóvel, a não ser pelos arrepios –não se podia dizer se de frio ou de pavor. Então, ainda achando tudo bizarro e sobrenatural, a moça virou-se e fitou o outro objeto estranho naquele quarto: a caixa dourada sobre a mesa de centro. A caixa, diferentemente do espelho, era linda, digna de uma rainha. Todo seu revestimento parecia ter sido talhado em ouro e, em sua porção superior, havia um nome talhado em material semelhante: CÁTIA. A moça assumiu que aquele fosse seu nome, embora não se recordasse ao certo e, então, abriu a caixa, certa de que lhe pertencia. Ao fazer isso, Cátia caiu no chão por causa de uma intensa dor. Percebeu que já sentia aquela dor desde que despertara no pálido quarto; entretanto, agora ela se materializara, ganhara vida. Caída no chão, a jovem viu o que havia no interior da caixa: era um coração; e, sem saber como ou por que, teve certeza de que era o seu coração. Abriu o traje que vestira há alguns minutos e viu que em seu peito havia uma cicatriz recente. Literalmente, seu coração havia sido arrancado de seu peito e jazia agora na caixa dourada. Ela não tinha ideia de como o sangue continuava a percorrer os tecidos do seu corpo; chegou a pensar que estivesse morta. O que significava aquilo tudo? Quem era ela? Onde estava? Por que não conseguia se lembrar de nada? Por que seu peito doía, vazio, e seu coração estava em uma caixa? Por que havia uma imagem sua presa em um espelho horrível? Cátia percebeu que, aos poucos, voltou a se acostumar com a dor. Ela não diminuíra, apenas tornara-se uma companheira, como nos instantes iniciais, antes de a caixa ser aberta. Então, levantando-se do chão, passou a admirar o próprio coração na caixa dourada. Ele pulsava. Tinha vida. Entretanto, era terrivelmente assustador. Suas câmaras estavam revestidas por uma série de manchas negras, algumas pequenas, outras maiores, quase cobrindo a extensão toda do órgão. A musculatura cardíaca parecia literalmente doente, fraca, abatida, manchada, enegrecida. De súbito, um som fez com que Cátia saísse dos próprios pensamentos e tomasse consciência do mundo ao seu redor. Ouviu um som que parecia vir do exterior daquele aposento e, finalmente, percebeu que estivera tão absorta em todos os mistérios daquele quarto frio, e da própria existência, que não pensara em sair dali e procurar ajuda, procurar respostas para suas indagações. Fechou a caixa dourada, segurou-a com força em um dos braços, fechou a veste longa e maravilhosa que encontrara no armário ao despertar, lançou um último olhar ao espelho, percebendo que sua imagem continuava presa naquele lugar pavoroso, segurando com força os joelhos contra o corpo, em posição quase fetal, e fitando o vazio; e saiu do quarto.