Cátia –bem, pelo menos assim ela pensou que se chamava –fechou a porta do aposento em que acordara e fitou a rua. Havia muitas construções semelhantes, a perder de vista. A moça girou em seus próprios calcanhares e vislumbrou o aposento do qual acabara de sair. Não se tratava de apenas um quarto. Mais parecia um conjugado, com quatro quartos. O dela era o térreo, à esquerda. Havia um à direita e dois acima, cada um com uma estreita escada lateral em caracol. Cátia observava cada detalhe com um misto de curiosidade e apreensão. Muitas perguntas ainda pairavam em sua mente. Os quatro quartos conjugados tinham as paredes exteriores cinza, assim como no interior do que Cátia acabara de sair. Não possuíam janelas, apenas uma porta cada, e ela pensou que os outros três cômodos estivessem desabitados. Contudo, o quarto ao lado do seu, do térreo à direita, chamou sua atenção. A caixa em suas mãos estremeceu e, ao abri-la, a moça pôde constatar que seu coração imediatamente tornara-se mais ameno, calmo…mais humano. Era como se aquele aposento frio e sem vida à direita pertencesse a alguém que seu coração conhecia, esperava…Alguém que ele amava muito. Aquele quarto literalmente lacrado e sem brilho lhe guardava algo, ela sabia, podia apostar…e seu coração compreendeu, ao simples vislumbre do local, que ali, em algum momento, algo mágico aconteceria. Então, voltando à realidade, a jovem virou mais uma vez e constatou que a rua toda era composta por inúmeras construções semelhantes àquela, cada uma com um número de quartos conjugados. Estranhamente, cada habitação na rua, embora todas fossem do mesmo estilo, tinha suas peculiaridades. Algumas eram mais claras, até com paredes brancas. Outras possuíam algumas janelas (também de todas as formas: pequenas, lacradas, grandes, abertas, requintadas, ornamentadas). Pessoas caminhavam pela rua, alegremente, indo e vindo em todas as direções. Cátia notou que cada uma, sem exceção, levava consigo uma caixa dourada semelhante à sua própria. Notou também que as pessoas usavam vestes menos notáveis que a sua. Pela larga rua, que era toda constituída por paralelepípedos, carruagens eram tracionadas de forma graciosa por belos animais. O céu da cidade era azul e lindo, resplandecendo aos olhos, e havia inúmeras nuvens, branquinhas, no céu, em formato de coração. Belos castiçais enfeitavam as calçadas; quando a noite chegasse, trariam um brilho âmbar maravilhoso ao local. Ao redor da bela cidade, via-se uma cadeia montanhosa, que circundava tudo. E, pelas ruas, havia canteiros centrais majestosos, com árvores altíssimas, também em formato de coração. Era esplendoroso. Ao longe, Cátia podia jurar que ouvia um delicioso apito de trem. Ela abriu a caixinha dourada. Seu coração permanecia ali, pulsando, doente. Manchado. Seu próprio peito ainda doía, e ela teve a certeza de que se tratava de uma dor crônica, que não a abandonaria tão cedo. Então um grupo de meninos se aproximou, e alguns disseram: –Vejam, uma recém-chegada! Ela não soube o que aquilo significava, mas percebeu que, cada vez mais, um grupo maior de pessoas dirigia o olhar em sua direção e, por entre os sussurros e cochichos, pôde distinguir inúmeras vezes a mesma expressão: –Recém-chegada…recém-chegada…As dúvidas a atormentavam tanto que chegavam ao ponto de deixá-la fraca. Ela queria se aproximar de alguém, fazer perguntas; ou então simplesmente voltar correndo para o frio e cinzento quarto, mas não tinha forças. Nesse instante, a porta do quarto acima do seu se abriu. Um simpático velhinho saiu de seu conjugado, desceu a escada lateral e caminhou em sua direção, sorrindo ao dizer: –Finalmente! Estou vivendo sozinho nesse conjugado há mais de um século! Já era tempo de chegar alguma companhia! Como se chama? Timidamente, ela mostrou a caixa dourada ao simpático senhor, e ele leu o nome talhado em sua parte superior: –Cátia –ele murmurou. –É um belo nome. Seja bem-vinda. Ela apenas o fitava. As dúvidas eram tantas e tão expressivas que não saberia por onde começar. Como se adivinhasse seus pensamentos, o velhinho continuou a dizer: –Veja, eu também não me desgrudo de minha Caixa Sagrada por um segundo sequer. Cátia viu que ele trazia nas mãos uma caixa semelhante à sua, com um nome dourado: TADEU. Ainda digerindo as informações, perguntou a si mesma: Caixa Sagrada? O que isso quer dizer? Mas Tadeu interrompeu os pensamentos da jovem, ao retomar a conversa: –Eu sei que você está apreensiva e cheia de dúvidas; é assim com todos os recém-chegados, não se preocupe. Eu e você temos afinidade, seremos uma espécie de família a partir de agora. É assim que as coisas funcionam aqui, as pessoas vivem juntas de acordo com suas afinidades. Eu lhe ensinarei tudo sobre este lugar, e lhe ajudarei a cuidar de seu coração e de sua Caixa Sagrada. Pela conformação de nosso conjugado, ainda teremos mais dois membros em nossa família, mas eles ainda não chegaram. Tenhamos paciência, por enquanto seremos apenas eu e você. Cátia lembrou-se do que sentira ao vislumbrar o quarto ao lado. Quem quer que fosse viver ali, trazia uma paz ao seu coração que antes ela desconhecia…Não podia explicar. Resolveu concentrar-se nas informações de Tadeu. Ele sorriu, e Cátia percebeu que usava um dente de ouro. Então, ao observá-lo pela primeira vez com mais atenção, percebeu que ele provavelmente tinha menos idade do que aparentava. Possuía uma barba rala e cabelos grisalhos, e em seu pescoço havia uma tatuagem estranha. Tadeu voltou a falar, ao vislumbrar a expressão aturdida da jovem: –Sabe, Cátia, a vida aqui é boa. É cheia de regras, entretanto. Você se acostumará com todas elas e, quando menos perceber, estará pronta para a travessia. Vendo novas indagações formarem-se no rosto da moça, ele completou: –Não tenha pressa. Tudo a seu tempo. Logo você terá as respostas de que precisa. Agora, vamos caminhar. Quero lhe mostrar o centro da cidade, ele não fica longe de nosso conjugado. Cátia e Tadeu começaram a andar pela calçada que ladeava a rua de paralelepípedos. A jovem ia observando tudo ao seu redor, cada vez mais estupefata com o número de conjugados que havia ali, cada um com suas características próprias. Também notou que havia muitas pessoas naquele lugar. E, pelo trajeto, viu mais uma ou duas pessoas vestindo um traje semelhante ao seu –e Tadeu explicou que se tratava de outros “recém-chegados”. Após alguns instantes em silêncio, dando o tempo necessário para que Cátia absorvesse as inúmeras informações ao seu redor, Tadeu começou a falar: –E o espelho? Ele lhe causou calafrios? Cátia permanecia sem fala, de modo que ele continuou: –Não se importe. O espelho causa espanto em todos os recém-chegados. Logo você saberá lidar com ele. Ele sorria conforme caminhava ao lado da moça. Ao dobrarem uma esquina e atingirem uma nova avenida, mais larga, que cruzava inúmeras ruas, Cátia visualizou algo ao longe. Algo maravilhoso. Não tinha como desviar a visão daquela imagem perfeita. A jovem parou de andar. Tadeu também parou ao ver o que chamara a atenção de Cátia. –É o Santuário. É perfeito aos nossos olhos. Só de contemplá-lo, sentimos uma paz capaz de afugentar qualquer temor. De fato, a dor no peito, o tormento de não ter memória alguma…Tudo havia sumido. Tudo o que Cátia queria e podia fazer era olhar…O Santuário ficava em cima da mais bela e alta colina, pertencente à cadeia de montanhas que rodeava a estranha e linda cidade. Era belo, brilhava. Suas cores, branco e dourado, iluminavam tudo ao redor, como se ele fosse seu próprio sol. Cátia ficou, por uma fração de tempo da qual não teve consciência, observando aquela arquitetura maravilhosa. Contudo, ele parecia tão longe, tão distante, inalcançável…Como se houvesse ganhado novamente a força e o ânimo para a vida, ela virou-se para Tadeu e, pela primeira vez, indagou: –O que é o Santuário? Por que ele é tão belo e distante? O que é esta cidade, aquele conjugado onde vivemos, esta roupa que estou usando? Por que meu coração está em uma caixa e, em meu frio e estranho quarto, há uma imagem repugnante de mim mesma presa em um espelho? Aliás, antes de tudo, quem sou eu, e o que faço aqui? Tadeu esboçou um amplo sorriso. Contudo, antes que pudesse dizer qualquer coisa, uma música preencheu tudo ao redor. Cátia foi absorvida por aquela melodia celestial, que percorria todas as ruas da cidade. Não havia músicos ou instrumentos…Apenas melodia. Era como se milhares de harpas flutuantes e invisíveis estivessem por todos os cantos da cidade. Olhou, então, para o Santuário, e percebeu que ele se elevara ainda mais, e que suas maravilhosas portas haviam sido abertas. A luz dourada que se desprendia do Santuário tornou-se infinitamente mais expressiva, recobrindo toda a cidade com a luz. Cátia sentiu-se inebriada com a paz daquela música e daquele clarão. Mais dúvidas a consumiam, mas agora tudo o que era capaz de fazer era concentrar-se em absorver a paz da divina melodia e do clarão vindo do belíssimo e inalcançável Santuário. Tadeu contemplava tudo com ar feliz, como se aquilo tudo fosse absolutamente normal.