Capítulo 1 - Não Vou Tentar Por Mim

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14 DE JANEIRO DE 2035

07h37min

    A voz gritava atrás de mim, mas já nem conseguia distinguir o que dizia em meio ao barulho das bombas que explodiam quase sobre nós, dos gritos desconhecidos e desesperados, dos atingidos pelo exército, e dos enfurecidos com olhos brancos e nenhum sinal de vida. A mão do piá, de menos de um metro de altura, apertava a minha enquanto o puxava por entre os corpos estirados pelo chão de uma das mais importantes avenidas de Curitiba. O suor dificultava nosso contato.

    Uma mulher segurou firme meu pé esquerdo quando passei por cima de seu peitoral e parei por um segundo para encará-la. Seus olhos, ainda com vida, imploravam por socorro e a boca ressecada estava entreaberta enquanto clamava por compaixão. Ela sangrava tentando se levantar apoiada em mim. Eduardo chegou, empurrando-me brutamente para frente e me obrigando a continuar contra a multidão que nos cercava.

    Uma bomba de fumaça explodiu a alguns centímetros de mim e o barulho só não foi tão pior quanto a falta de ar que me fez soltar a mão de Hugo e levá-la aos olhos ardendo. Tossi antes de notar a burrice feita. Tudo embranqueceu e um desespero me consumiu quando deixei de ver tudo ao meu redor. Não conseguia parar de rodar, recebendo o impacto de outras pessoas desnorteadas, cheia de pavor. Mal sabia onde estava, mas como conseguiria procurar pelo piá de sete anos que prometi proteger se não controlasse a ansiedade irracional?

    — Hugo! — gritei, com os olhos fechados e o pulmão queimando.

    Caí de quatro no chão após mais um empurrão. Não escutava minha própria voz e os impactos continuaram a aumentar quando a fumaça cessou parcialmente e pude abrir os olhos. Uma mulher esbarrou tão forte em meus braços apoiados no chão que me fez, sem equilíbrio, arrastar o rosto no asfalto.

    Há uma coisa que impede uma pessoa se afogando de parar de tentar alcançar a superfície. Chega um momento que precisa abandoná-la, porque o corpo obriga, mas não é uma decisão fácil. Perdê-la é assustador. Nunca fui uma pessoa otimista, mas sabia o final da história. Naquele instante, se abrisse mão da esperança, não seria a única morta no final. Se não me levantasse no instante seguinte ao que meu rosto atingiu o chão quente e áspero, teria sido pisoteada como os outros. Mas eu sobrevivi ao mar aberto.

    Levantei e me senti em um show de rock, no meio de um bate cabeça, não consegui me mover em direção contrária. A lateral esquerda do meu rosto ardia e pressionei meus olhos escuros e puxados para enxergar o local cercado pelo exército, onde todos tentavam chegar.

    Exatamente ao meu lado esquerdo, um homem de camisa social foi lançado para trás com velocidade, arregalei os olhos ao notar o tecido branco se manchando com o vermelho do seu sangue lentamente. Uma mão segurou meu pulso e me assustei antes de encontrar os olhos pretos de Eduardo, ocupando o buraco aberto pelo rapaz atingido. Com mais força, nós dois começamos a conseguir nadar contra aquela correnteza humana enquanto os tiros ainda invadiam nossos ouvidos.

    Colocou-me encostada na parede desuniforme de um dos muitos becos que existiam naquela avenida. Forçou a mão em meu queixo e virou o rosto para analisar o sangue escorrendo em minha bochecha. Tossi e gemi, pressionando os olhos ardendo sem fechá-los quando ele me soltou.

    Os cabelos cacheados e presos no topo da cabeça dele, estavam desarrumados e as sobrancelhas grossas arqueadas em um olhar assustado. Os lábios carnudos e escuros de Edu se descolaram, mas ele não disse nada.

    — Eu sei — sussurrei, chegando mais perto e apertando os braços em volta do pescoço do rapaz dez centímetros mais altos e com músculos bem definidos. — Eu sei — repeti, me afastando e olhando seu rosto de pele negra e suada.

    — Eu deixei Hugo em outra entrada — contou, colocando uma mecha do meu cabelo preto para atrás da orelha direita. Aquela informação fez minhas pernas bambearem de alívio. — Vou buscar ele, Luna. Fica aqui.

    Eu assenti e um segundo depois Edu me deixou para trás, entrando novamente naquela multidão que parecia um único organismo. Olhei novamente para o ponto aonde todos queriam chegar, balancei a cabeça negativamente, entendendo.

    — Estão levando pessoas para o núcleo — disse a voz masculina desconhecida e fraca ao meu lado, olhei o homem com uniforme de segurança sentado no chão um pouco mais dentro do beco. Sua jaqueta era preta e sua perna direita sangrava na calça azul escuro.

    — Eles não vão levar todos — disse, ainda olhando o homem de cabelos pretos grudados na testa branca suada e olhos cansados.

    — Não vão deixá-los — falou. Respirei fundo, triste em saber que eu estava certa.

    — Não vão levar ninguém — sussurrei, caminhando até ele e me agachando diante da perna machucada. — O que aconteceu aqui?

    — Um piá tentou me matar. — Riu, como se fosse a coisa mais comum do mundo e gemeu quando mexi no membro. — Me chamo Roberto.

    Encarei-o por alguns segundos e rasguei a calça a partir do buraco que já existia, expondo a ferida feita por dentes que liberava sangue preto e pus. Pressionei o tecido rasgado da calça nela e Roberto apertou meu pulso com a dor.

    — Luna, prazer — respondi. — Tá infeccionado, tu precisa de um hospital — declarei.

    Ele riu, mesmo que seus lábios pálidos e rachados entregassem seu mal-estar. Falou:

    — Já vi acontecer, vou virar um deles. — Soltando meu pulso. — Tu vai tentar? — perguntou, olhando em direção à saída daquela travessa, onde a multidão estava.

    — Chegar num núcleo ou salvar sua vida? — Sorri, tentando confortá-lo.

    — A única coisa que tu tem chance de conseguir. — Encarava-me com aqueles olhos castanhos caídos, de cílios fartos e que já esperavam pela morte.

    Lembrei-me do que tinha me ocorrido menos de doze horas antes, quando trouxe comigo uma criança que precisava de ajuda. Não existia a opção de desistir para mim, prometi que cuidaria do piá e o levaria para ocupar o lugar no núcleo que sua herança havia comprado.

    — Luna... — disse a voz familiar atrás de mim. O rapaz tinha a criança pendurada nas costas e me olhava assustado ao lado do homem que já tinha fechado os olhos.

    Levantei-me rápido e passei a mão pelos cabelos marrons do menino branco quando se aproximaram de mim. Estava agradecida por aquele que cuidei por tantos anos estar bem.

    — Eles já estão lá — falou, lembrando dos nossos amigos, nos quais tentávamos chegar desde que entrei na cidade de Curitiba.

    — Ele... — comecei olhando para o rapaz no chão, e depois novamente para Eduardo, que me encarava com sua cara de pena. Balancei a cabeça negativamente. — Edu...

    Ele apenas me olhava com frustração, sempre odiou me decepcionar e com certeza desgostava ainda mais quando isso envolvia a vida de alguém, mesmo que não pudesse ser realmente salvo.

    — Luna, tu sabe como funciona — falou, então começou a andar para fora da travessa pelo lado contrário ao que entrou e me deixando lá, parada, encarando Roberto desacordado e fadado a uma morte lenta e dolorosa.

    Respirei fundo, mais brava do que triste com tudo aquilo. De dentro da mochila azul do piá, que estava em minhas costas, retirei o ferro afiado que tinha pegado na garagem antes de sair. Não pensei que entraria em carne humana tão cedo, mas era a coisa certa a se fazer.

    Por mais assustador que pode soar, aquela não seria a primeira vez que eu mataria alguém. Nem a segunda ou a terceira. Existia muito sangue em minhas mãos. Todas as mortes dos militares e dos ativistas de frente da União Contra a Ditadura, escorriam por meus cotovelos, mesmo que a maioria das pessoas não soubessem disso. Eduardo apenas me assistiu enfiar o objeto na lateral esquerda da cabeça do homem, pondo um fim em sua dor.

    — Não vou tentar por mim — sussurrei, mesmo que Roberto não pudesse mais me escutar. — Mas vou fazer tudo para conseguirem.

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