Rafael me apontava sua grande e cinza câmera multifocal de última geração enquanto tentava se manter de pé na van de teto alto e carpete preto. Antes de encontrarmos nosso pessoal, limpei o sangue em minha mão em uma das camisetas extras de Hugo e a joguei no lixo junto com o ferro, não queria ter que me explicar.
O piá não tinha visto o que eu havia feito e era bom também que nenhum dos outros soubessem. Encarava meu mais antigo amigo sem paciência e respirei fundo ao responder à pergunta que ele insistira por largos minutos.
— Sou do Rio Grande do Sul. Agora... — bati em sua câmera, afastando-o —, para com isso.
Balancei a cabeça negativamente e encarei a criança de sete anos dormindo em um dos únicos lugares confortáveis daquele veículo. O sangue do arranhão em meu rosto havia secado, porque não tive tempo para lembrar que ele existia. O veículo se mexeu bruscamente pela estrada esburacada e Rafael caiu como uma fruta amadurecida em cima de mim, bufei.
— Nós estamos em alguma estrada rumo a São Paulo por mais de três horas — completei quando ele, deitado, apontou a câmera novamente para mim.
— Não fazem nem duas — corrigiu Eduardo, sentado ao lado de Hugo.
— Estamos deixando Curitiba. — Apontou a câmera para si mesmo. Os cabelos castanhos claros caíam sobre seus olhos de mesma cor. — Tá cheio de pessoas malucas com gorna por aqui — o rapaz de vinte e três anos fez uma pausa para digerir as próprias palavras —, tudo está sendo bombardeado e os militares não parecem se importar muito com quem está infectado ou não... — Sua voz saiu mais pesada e triste. Suspirei e estendi a mão para o homem de pele branca e braços finos na intenção de ajudá-lo a se levantar.
— Não faz isso... — sussurrei. Depois do que vi naquele dia, a última coisa que precisava era escutar a verdade em voz alta.
Rafael fechou a câmera e sentou-se no carpete da van, aceitando minha ajuda um segundo depois e ficando do meu lado.
— Gravar não ajuda — disse Eduardo, me olhando e tentando me confortar.
Rafael o olhou, depois abriu o objeto e apontou-o ao homem de barba mal feita à sua frente.
— Tu já sabe o que fazer — disse.
Eduardo abriu o isqueiro para acender mais um cigarro e sorriu, já era o sexto em menos de três horas, eu sabia o que aquilo significava. Ele estava ansioso. Uma briga teria começado por qualquer um que fumasse dentro da van do meu pai se isso fosse em qualquer outra situação, mas não naquela. Não no meio de uma guerra onde as bombas explodiam a todo instante e que poderia muito bem nos acertar a qualquer momento. Não quando os mortos voltaram a andar daquela forma medonha bem diante dos nossos olhos.
Não no maldito apocalipse. Odeio essa palavra.
Olhou em direção à câmera e pressionou os olhos como sempre fazia quando queria ficar mais bonito, e ficava, e deu um trago antes de responder:
— Eduardo, de São Paulo. — Soltou a fumaça sem nenhum entusiasmo. — Ah, mas eu estava em Curitiba também. Morava lá há três anos. — Olhou-me.
Existia um motivo para aquele guri ter me olhado e era a explicação por ter deixado São Paulo. Foi por mim, mas precisou deixar de ser quando terminamos meses antes daquilo tudo. Rafael fechou a câmera novamente.
— Tu é fã de filmes de zumbis — afirmou Eduardo. — Sabe que o piá chato com a câmera sempre morre, né?
— É, acho melhor parar — disse rindo, mas nitidamente nervoso.
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Além Do Apocalipse ⚥ [Amazon]
Ficção CientíficaLuna não gosta de filmes de terror e agora precisa ser racional para sobreviver a um. Em 2035, os mortos estão andando pelo Brasil e, enquanto os ricos são isolados em núcleos de segurança, a população normal sofre os ataques do estado ditatorial br...