As sementes

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Era uma vez em Felicidade um velho tão unha-de-fome que andava uma semana com o


chinelo esquerdo, pé direito com sapato - para ninguém dizer que ele era pobre. Depois


andava outra semana com o chinelo direito, o pé esquerdo com sapato: chinelo é mais barato


e, assim, os sapatos duravam anos. Até que um dia ele morreu, sem desconfiar que aquela dor


nas costas era de andar com um pé mais alto que o outro.


Se Cristóvão Colombo se chamasse Américo Vespúcio, tinha descoberto a América do


mesmo jeito; e Joaquim José da Silva Xavier era tão Joaquim quanto Joaquim Silvério dos


Reis, de modo que não adianta nada contar o nome do velho. Com qualquer nome ele ia


morrer do mesmo jeito: sozinho, apesar de rodeado de gente.


Antes de morrer ficou um tempão caído no quintal, sem ninguém para dar uma mão ou uma


palavra. Tinha chegado da rua e ia entrando pela cozinha para economizar a escada da frente,


que era de mármore. Aí, caiu e ficou.


A escada era de mármore porque o velho era munheca mas não era pobre; era dono de


metade da cidade. Morava ali porque a cidade era tão pobre que ninguém pagaria aluguel


daquele sobrado.


Tinha comprado da viúva do fundador de Felicidade, que tinha erguido o sobrado no tempo


em que as tropas de burros passavam com café e açúcar a caminho do porto.


Depois voltavam com tecidos, mantimentos, remédios, miudezas e encomendas.


Quando viam de longe uma tropa chegando, os meninos ficavam até sem fôlego de contar


um, dois, três, dez, cinqüenta burros olhando o rabo um do outro pela estrada enrolada na


serra, na frente a mula-madrinha com o cincerro no pescoço.


O eco batia no povoado, e sempre algum menino gritava que tinha tropa descendo a serra; ia


gritando rua afora e os moleques iam despencando das árvores, saindo dos esconderijos,


batendo portas - e corriam pela estrada para esperar na ponte.


A tropa arranchava ali, e a molecada ia e voltava com cestas cheias de cocada, curau,


pamonha, quindim, bom-bocado e outros doces e salgados para vender. Os tropeiros comiam


com saudade de casa, depois de mastigar o arroz-feijão com carne-seca que cozinhavam nas


pedras da beira do rio.


Tomavam banho, lavavam a camisa para o dia seguinte e, de manhã, entravam na cidade


vendendo bebida e sedas, sapatos e pimenta, roupas e aviamentos, secos e molhados; de modo


que Felicidade, no tempo em que era povoado, era mais animada do que depois que cresceu e


as tropas deixaram de passar.


No dia em que passou a última, ninguém desconfiou que era a última.


Ficaram muito tempo esperando outra, e enquanto isso gente ia casando, ia nascendo gente e

A Árvore que Dava Dinheiro - Domingos PellegriniOnde histórias criam vida. Descubra agora