A gente da cidade ia perdendo a vergonha. Janelas se abriam e, numa janela, uma mulher
pendurou uma toalha de crochê para tomar sol: as árvores tinham sombreado todo o quintal, e
ninguém ainda tinha ânimo para cortar. Então a mulher ficou vendo o movimento e até se sentiu
mocinha, e falou para a filha: — Felicidade tá assanhada!
A filha olhou: — Parece até cidade. Graças ao dinheiro.
— Não fale mais esta palavra nesta casa! — o pai trovejou.
A filha perguntou se podia sair.
A mãe virou uma múmia, falando baixinho e seco, de modo a acabar conversa: — Com a
cidade assanhada assim? Nem pense.
E já ia fechando a janela, quando encostou um casal de turistas com roupas coloridas e
sandálias tão novas que rangiam. Deram boa-tarde, pediram água, por favor.
A mulher trouxe uma jarra e dois copos, pediu desculpa que a água não estava gelada:
— A gente não tem geladeira.
Os turistas bebiam e ela se sentia na obrigação de falar alguma coisa.
— Mas o importante é ter saúde, né?
A turista bebia. De repente parou engasgando e arregalando os olhos. A mulher enfiou
depressa os dedos no copo para jogar água no rosto dela, aí recolheu a mão envergonhada: —
A senhora desculpe, é costume da gente; pra passar o engasgo.
A turista mal se desengasgou, pegou a toalha de crochê deitada na janela: — Ai que
maravilha, que coisa mais linda!
O turista pegou no braço dela: — Então vamos indo. Obrigado pela água.
— Não há de quê. Desculpe o mau jeito.
A turista nem ouvia, admirava a toalha.
— Já pensou esta toalha na mesa da sala?
O marido tentava: — Vamos indo.
— Espera um pouco, que agonia! A senhora não tem toalha assim pra vender, dona?
O turista suspirou: — Quando ela enfia uma idéia na cabeça, eu logo enfio a mão no bolso.
Aí começaram a discutir, e a mulher ficou envergonhada de estar ouvindo; começou a aguar
uns vasos. De repente, o turista chamou: — Quanto a senhora quer pela toalha, dona?
— Não é pra vender não, o senhor desculpe.
O homem enfiou a mão no bolso, suspirando, tirou umas notas.
— Isto paga?
— Imagine! Não vale tudo isso não!
E quase se benzeu: era um dinheirão por uma toalha velha!
— Foi bordada pela minha finada mãe, mas é uma toalha velha.
— Então a senhora diga quanto vale.
A mulher se encolhia.
— Ah! Não sei não, nem tenho idéia...
O turista botou o dinheiro na mão dela: — Então isto paga.
Ela viu que era dinheiro velho, verdadeiro, fechou a mão. A turista pegou a toalha e saiu
repetindo que maravilha, que coisa mais linda. A mulher ficou na janela com o olhar perdido;
depois olhou para o fim da rua; lá adiante apareciam barracas coloridas, fumaça de
churrasqueiras debaixo da ponte, e mais turistas vinham com roupas coloridas, sandálias novas, ombros melecados de creme e dinheiro no bolso.
Então ela virou ligeira para a filha: — Vai na casa da vó, pega umas toalhas e diz pra ela
fazer mais.
O pai esperou a filha abrir a porta, aí falou: — Fecha a porta.
A filha fechou a porta e ficou, os seios subindo e descendo de raiva. O pai falou para as
paredes: — Sair nesse movimento?
A mãe estava fuçando no quarto, gritou: — Pode ir sim, minha filha! — e voltou com
toalhas, passou pelo marido falando baixinho: — Não complica não, velho. Turista é tudo
gente boa.
Estendeu uma toalha na janela, deixou a jarra de água bem à vista no beiral e ficou
esperando. Quando outra turista perguntou da toalha, disse que era de estimação: — Minha
finada mãe quem bordava; só fiquei com duas quando ela morreu: eram onze irmãos.
A turista ficou muito sentida: — Eu queria tanto uma toalha assim — e perguntou se
ninguém mais em Felicidade fazia crochê. A mulher respondeu depressinha: — Se a senhora
gostou tanto, leva esta mesmo.
E pediu um preço tão alto que fechou os olhos.
— Às vezes me dá um turvamento na vista...
Quando abriu os olhos, parecia um sonho: a turista estendia notas de dinheiro — mas tão
novinhas como as das árvores...
— A senhora me desculpe, mas dinheiro novinho assim... a gente tem de testar.
A filha chegava com uma braçada de toalhas.
— Mais roupa pra lavar, minha filha? Como essa menina trabalha! Mas me faz um favor:
vai até a ponte com este dinheiro e volta ligeirinha.
Sorriu para a turista ainda de pé no sol da rua: — É só um minutinho. A senhora não toma
uma agüinha? É de bica, fresquinha.
Enquanto esperavam a filha voltar, vendeu para a turista um vaso de samambaias. Depois
abriu de novo o baú e contou as toalhas, toalhinhas, roupas de nenê, golas e punhos de crochê;
não tinha pouco, mas também não tinha muito.
— Temos que fazer mais.
O marido jantou pensando, falou depois do café: — Nada de aumentar estoque. Viu o que
aconteceu com os comerciantes.
O negócio é aumentar os preços!
E a filha deu idéia de colher limão nos quintais, pedir gelo no bar e fazer limonada: — Eu
engarrafo com rolha, encho uma cesta e vou vender na rua...
O pai concordou: — Mas venda caro!
Assim as árvores continuaram a dar dinheiro; dinheiro verdadeiro.
Os litros de limonada voltaram vazios, e a moça com o bolso da saia cheio de dinheiro.
Então as mulheres lembraram que antigamente as mães faziam doces para vender aos
tropeiros acampados no rio; e procuraram assadeiras esquecidas nos armários, velhos
cadernos de receitas com caligrafia caprichada e cheiro de cravo e canela.
Os quintais tinham antigos fornos redondos de barro, onde agora galinhas botavam e gatos
dormiam nos dias de chuva; então elas espantaram os bichos e varreram os fornos. Jogaram
lenha, botaram fogo e, quando virou braseiro lá dentro, tiraram as brasas e foram enfiando fornadas de doces de milho e de coco, enquanto no fogão borbulhavam caldeirões de abóbora
e mamão, cidra e pamonha.
Logo eram dezenas de meninas e moleques saindo com cestas cobertas de toalhas de
enxovais antigos, onde se lia em letras bordadas “Deus ajuda quem cedo madruga”.
As mulheres madrugavam despalhando milho verde que os maridos buscavam de noitinha
nos sítios, depois que voltavam do serviço; e as meninas, logo que acordavam, sentavam ao
lado das mães para ajudar; de modo que, de noite, todos deitavam moídos e dormiam pesado.
Sonhavam como gastar tanto dinheiro — verdadeiro — que ganhavam agora. Os turistas
gastavam tanto que um menino perguntou ao irmão mais velho, que sempre sabia de tudo: —
Que quer dizer turista? Gente que viaja?
— Não. Gente que tem dinheiro.
Correndo com dinheiro até a ponte, os meninos chegavam de noite tão cansados que nem
saíam mais para trepar nas árvores, brincar na rua; e mesmo nessa hora os turistas
continuavam gastando dinheiro. Encostavam nos balcões dos bares e pediam cerveja e
caipirinhas, e mais cervejas e queijo em pedacinhos, depois salame; e sumiam assadeiras e
assadeiras de coxinhas, pastéis e empadinhas.
Um dono de bar colocou uma mesa na calçada, os turistas aplaudiram.
No outro dia ele buscou uma velha mesa de casa, arranjou outra com um cunhado que
contratou como garçom, comprou mais uma de um vizinho, e assim, à noite, lá estavam quatro
mesas na calçada: diferentes no tamanho e na altura, mas cheias de turistas que bebiam,
cantavam e riam, comiam, cantavam e riam, e, no fim das contas, deixavam gorjetas.
Quando pagavam uma conta, o garçom passava o dinheiro a um menino que corria até a
ponte; e logo eram precisos três moleques para esse serviço: os turistas sentavam nas mesas,
no meio-fio, no meio da rua, comendo, bebendo, cantando, rindo e pagando.
Então outro bar botou mesas na calçada, com cadeiras de palha que os turistas adoraram, e
com sarapatel que uma velha cozinhava suando entre caldeirões enormes na cozinha miudinha.
Mas era preciso: os turistas pediam um prato depois do outro, e comiam, bebiam e pagavam
rindo, e sem perguntar o preço antes nem depois.
Chegavam de ônibus com bumbos e violões; e chegavam de carro com varas de pesca,
barracas, frigideiras e fogareiros, cachorros tontos com jeito de fera e crianças que viviam
pedindo coisas.
A primeira coisa que faziam era ver as árvores, pegar notas de dinheiro, acender cigarro
com dinheiro e rasgar dinheiro à vontade. Depois isso perdia a graça e queriam sol, banho de
rio e comida, bebida e cantoria. De cima do morro agora se via a cidade enfumaçada: os
turistas assavam carne em valetas no chão, de manhã à noite, e meninos de Felicidade iam e
voltavam com cerveja para os homens e refrigerantes para as crianças.
Quando traziam de volta as garrafas, paravam no meio do caminho e, numas moitas, bebiam
os restos até enjoar. Quando enjoavam, vendiam um pouco para os meninos menores que
engraxavam sapatos e vendiam laranjas.
Um rapaz inventou de vender espetos de bambu, e logo contratou três meninos; ele entrava
de facão nos bambuzais do rio, ia fazendo os espetos e os meninos levavam para vender.
Outros rapazes também desistiram de esperar emprego e começaram a arranjar serviço:
engarrafar água de mina para vender como Água Mineral Felicidade; levar turistas de bote para pescar no meio do rio, onde em 1945 o finado Zé Anzol pescou um pintado de quarenta
quilos; ou catar cajus no mato; fabricar carvão; cozinhar milho verde em tambores e vender,
vender, vender, até não caber mais dinheiro no bolso.
E meninos corriam sem parar até a ponte com dinheiro na mão, voltavam correndo. As
árvores continuavam a dar, e o vento espalhava dinheiro por todo lugar. Nos quintais, dinheiro
apodrecia em camadas no chão, e ninguém mais tinha tempo de varrer porque era preciso fazer
mais doces, mais salgados, encher mais marmitas, mais garrafas de sucos e batidas, e no
quartinho dos fundos a avó e a tia-avó bordavam ou crochetavam sem parar.
As casas amanheciam com placas novas todo dia: Fornecemos Marmitas Bordados à Mão
(De família) Doces e Salgadinhos Travesseiros de “PAINA”
Crochê por Encomenda Aqui! Pinga de Alambique Alugam-se Bote e Bicicleta Comida
Caseira Os bares invadiam as calçadas com mesas e prateleiras de doces. As meninas
atendiam perguntando — Posso servi-los em alguma coisa? — mesmo quando o turista estava
sozinho. E as moças de letra bonita escreviam cardápios em cartolina para pendurar nas
paredes: sarapatel, dobradinha, virado de milho, cuscuz, arroz-de-carreteiro, galinha ao molho
pardo, rabada, doce de mocotó, canjica, arroz-doce, queijadinha, olho-de-sogra, beijo-de-
moça, sonho-de-padre, maria-mole e todos os doces de antigamente.
Os caminhões de bebidas, que antes passavam uma vez por mês e depois uma vez por
semana, agora passavam dia sim, dia não — e um caminhão frigorífico entregava meio boi
aqui, ali um traseiro, lá um dianteiro, mais adiante um boi inteiro. Ninguém mais encomendava
carne ao açougueiro e, como a mulher andava ganhando dinheiro com crochê, ele começou a
fazer redes de pesca na varanda, para matar o tempo antes de ir pescar.
— Quanto? — os turistas perguntavam.
— Quanto o quê?
— Quanto quer pela rede?
— Não é para vender — ele respondia sempre, tantas vezes, que achou melhor ficar no
quintal.
Mas as árvores sombreavam tudo, então ele pegou o machado para cortar uns galhos, a
mulher não deixou: — Deixa como está. Quem sabe...
Ele deixou o machado, pegou a vara de pesca, mas logo voltou: os turistas nadavam,
jogavam garrafas e latas no rio, pescavam traçando linhas, uma lancha puxava um esquiador e
rádios tocavam alto. Então o açougueiro começou a reformar a caminhonete, botando antes
uma placa: Não vendo nem compro ”NADA”!
— Se pudesse — resmungava —, comprava só um pouco de sossego.
Felicidade, se pudesse, comprava tempo: todos ganhavam tanto que só faltava tempo para
ganhar ainda mais dinheiro.
Homens largaram do emprego ou deixaram as roças para virar pedreiros e encanadores:
todo dia um dono de bar resolvia derrubar parede, aumentar cozinha, construir mictório;
depressa, os turistas exigiam. E um sobrado virou hotel, um casarão virou pensão, quarto-de-
despejo virou quarto de aluguel.
No rio, rapazes enchiam velhas câmaras-de-ar para alugar como bóias; e também alugavam
varas de pesca, vendiam anzóis, latas de minhocas e, se fosse o caso, até pescavam para o
freguês.
Homens saíam cedinho com carroças para buscar milho e abóbora nos sítios, frangos e
ovos, frutas e lenha.
Um menino tinha um viveiro de minhocas, e Felicidade achava que era um tonto; até que
minhocas valeram dinheiro e todos concordaram: — Sempre foi um menino muito vivo.
Uma moça inventou colares de feijões-pretos, e um velho que fazia canecas de lata inventou
de escrever nelas “Lembrança de Felicidade”; os turistas achavam uma graça e compravam de
dúzias.
Então surgiram bilboquês e porta-retratos, bichos e cinzeiros de cascas de coco e colheres
de pau, pulseiras de sementes e esteiras de palha, tudo “Lembrança de Felicidade”; e os
turistas riam enfiando a mão no bolso, pagavam sem dó do dinheiro. Os meninos corriam até a
ponte o dia inteiro. Uns estudavam de manhã, outros de tarde, assim tinha sempre uma turma
correndo nas ruas e nas beiradas do rio; na escola, dormiam sobre os cadernos. A professora
aproveitava para tricotar: os turistas continuavam adorando tricô e crochê.
Mediante módica gorjeta, o atendente da Telefônica fazia ligações interurbanas sem demora.
Sem gorjeta, com demora.
Um sujeito aprendeu o ofício de borracheiro, contratou dois ajudantes, e um deles logo
abriu outra borracharia.
Meninos maiores andavam com baldes e panos lavando carros.
Meninas com tabuleiros de bijuterias.
Meninos com tabuleiros de pipocas, limonada, cestas de pastéis e coxinhas.
Homens com carroças de legumes e frutas, cada um inventando seu pregão.
Ooooolha a jabuticaaaaba!
Laraaaannnnjabaiana!
Milhoveeerde-miiiilhoverde!
E nos fundos das casas bordavam as velhas de vista boa; as de vista ruim faziam crochê tão
ligeiro que mal se via a ponta das agulhas.
Numa casa a família reuniu de noite em volta da mesa; os filhos e a mulher escutaram o
homem: — Tive uma idéia. A gente quebra aquela parede ali, emenda a sala com o quarto, dá
um salão pra cinco ou seis mesas, e damos refeições.
A filha maior fez cara de nojo: — Vamos morar num restaurante, pai? Que vão pensar da
gente?
A mãe:
— Vão pensar que estamos ganhando dinheiro, e tomara que seja verdade.
Eu cuido da cozinha.
O filho maior: — Temos de aproveitar, é Deus que mandou essa gente. Eu cuido das
bebidas.
O filho menor: — Eu corro até a ponte com o dinheiro.
A filha menor: — Eu sirvo as mesas.
A filha maior: — Eu morro de vergonha.
A mãe:
— Então você fica comigo na cozinha.
O pai levantou, foi até o quintal, voltou com uma marreta: — Então amanhã mesmo eu largo do emprego.
E começou a marretar a parede: — Não agüento esperar até amanhã.
Os filhos começaram a arrastar os móveis.
Numa semana, outras casas também botaram placas na calçada: Comida Caseira Ambiente
Familiar Demoliam quartos para emendar com a sala, e era sempre preciso aumentar a cozinha
e ter papel higiênico para os turistas no banheiro, ao lado do jornal para o pessoal da casa.
Pediam mesas para os parentes e enchiam a sala, os turistas comiam se cotovelando.
Agora a mãe cozinhava em caldeirões mais altos que o filho menor, e em frigideiras para
uma dúzia de bifes, num fogão a lenha e num fogão a gás; sem tempo nem para tirar o cabelo
do olho e, talvez por isso mesmo, sem reclamar mais das tonturas, das varizes, da coluna, da
enxaqueca e das colites. Não tinha mais nem tempo de discutir com o marido: ele buscava
lenha, fazia as compras e as contas, ajudava a filha e a sobrinha maior a atender as mesas. A
sobrinha menor também ajudava na cozinha, e o caçula contratou dois priminhos para correr
até a ponte, enquanto ficava engraxando sapato debaixo das mesas.
Depois que lavavam os pratos, as moças sovavam massa, fritavam salgadinhos; as meninas
saíam com cestas e os meninos iam juntos para correr até a ponte em caso de dinheiro novo
(dinheiro velho era sempre verdadeiro). Quando voltavam, sempre tinham novidade em casa:
geladeira, congelador para os peixes, refrigerador para as bebidas, mais pratos e talheres,
copos e jarras, toalhas, litros de mel ou bordados da família, alguma nova idéia do pai: — Aí
pelos sítios tá sobrando pimentão. Você ainda faz pimentão recheado?
O filho mais velho tinha caligrafia melhor para as placas: ”Hoje”: Almoço Especial
Pimentão Recheado E aumentavam o preço do almoço, na janta serviam os restos como
“Croquete à moda da casa”.
Um velho saiu de charrete, um menino turista viu e agarrou na roupa do pai, apontando e
choramingando: — Quero passear naquilo, pai, quero passear naquilo.
O velho passeou com o menino na boléia, segurando uma ponta das rédeas; uma volta pela
cidade, depois uma volta na praça e, depois, o menino não queria descer, agarrava na rédea:
— Mais uma volta, mais uma volta!
O velho disse que também tinha um neto teimoso assim, ia dar mais uma volta, pronto; então
o turista enfiou a mão no bolso: — O senhor faça o favor de cobrar. Quanto é?
O velho falou que de jeito nenhum, era um prazer.
— Eu tenho neto nessa idade, criança é assim mesmo.
Passeou com o menino e outro que subiu na esquina. Os dois pegaram as pontas das rédeas
e um puxava de cá, outro puxava de lá, até que pararam admirados quando o cavalo começou a
soltar troços verdes e fumegantes.
Quando apearam, outros meninos já choravam puxando as roupas dos pais.
— Eu também quero, eu também quero!
E os pais perguntavam quanto custava o passeio. O velho olhou o chão, falou com a voz
sumida: — Cada um dá quanto quiser.
No outro dia comprou madeira, chamou um filho carpinteiro, arranjou rodas de bicicleta e
fizeram uma carreta com banquinhos, atrelaram na carroça, botaram uma sineta no cavalo e
saíram pelas ruas. Num instante a carreta estava lotada de crianças; e duas iam na boléia,
naturalmente pagando um pouco mais.
A sineta soava como anúncio de Natal; o tempo passava, dezembro ia chegando e as árvores continuavam a dar dinheiro. Mudou o ministro da Fazenda, a casa da moeda lançou
novas notas no país; e, no mesmo dia, as árvores deram notas com a assinatura do novo
ministro.
Então Felicidade virou notícia de novo, e chegaram mais e mais turistas.
Pensões viraram hotéis, mais casas viraram pensões, e os comerciantes reformaram as
lojas; nas prateleiras surgiram roupas da moda e bebidas caras, artigos de pesca e de
acampamento, enlatados e isqueiros, barbeadores e revistas, dinheiro emoldurado e abajures
de dinheiro. Nas ruas, carroças vendiam frutas da terra, legumes e dinheiro: agora a gente de
Felicidade varria tudo cedinho. De manhã os turistas quase não achavam dinheiros nas ruas,
tinham de comprar.
As árvores davam muito dinheiro, mas já eram turistas demais: olhando da ponte,
Felicidade era uma ilhota de telhados, enfumaçada, cercada de barracas por todos os lados. À
noite, as barracas gargalhavam, enquanto Felicidade dormia cedo: mal amanhecendo, era
preciso varrer dinheiro, acender o fogo... nem tinham tempo de contar quanto dinheiro
ganhavam, mas ganhavam.
Os bares aumentavam os balcões frigoríficos, os estoques, os preços e as pedras de gelo;
diminuíam as doses e as porções. Um homem vestiu camisa branca e calça preta porque não
tinha mais roupa limpa — e ia passando por um restaurante com mesas na calçada, um turista
chamou: — Garçom! Faça o favor.
O homem foi até a mesa.
— Uma cerveja estupidamente gelada. Capricha que tem gorjeta.
O homem foi até o balcão, pediu uma cerveja, levou; quando ia saindo, o dono do bar
chamou: — Quer ser garçom? Pode começar já.
Os restaurantes caseiros também começaram a cobrar gorjeta e agora tinham ventiladores
no salão, na cozinha novo fogão a gás, quartos com beliches para quatro ou até seis, se dois
dormissem no chão.
Duas famílias parentes foram morar juntas, e da casa que sobrou fizeram pensão. Encheram
de camas os quartos, a sala e a cozinha; azulejaram o banheiro, como os turistas gostavam —
e, de manhã, levavam a cada quarto uma bandeja com café e leite, pão com manteiga, uma
fruta e um maço de dinheiro. Os turistas adoravam, pagavam sem piscar. Logo outras famílias
também se juntaram para abrir mais pensões, e vieram mais turistas.
A Prefeitura cobrava impostos. Contratou funcionários para cobrar mais e, por isso, cobrou
ainda mais para pagar os funcionários; mas, no fim das contas, sobrou dinheiro para um
moderno caminhão de lixo que o prefeito mandou pintar com letras grandes:
PREFEITURA MUNICIPAL DE FELICIDADE
DINHEIRO AQUI É LIXO!
E o lixo aumentava todo dia: Felicidade estava sitiada por barracas, onde latas e garrafas
eram abertas sem parar, e nas pensões os turistas gastavam tanto papel higiênico e
guardanapos que alguém teve a idéia: por que não usar dinheiro? Os turistas adoraram.
A fumaça das chaminés vivia sobre Felicidade. Nas ruas, um trânsito de carros, ônibus,
charretes enfeitadas e bicicletas: agora os meninos pedalavam até a ponte. E
surgiram na praça duas agências bancárias; dois bancários iam de moto até a ponte.
Aí Felicidade pediu dinheiro emprestado aos bancos: aumentaram os bares e restaurantes,
mais pensões viraram hotéis e mais casas viraram pensões, aumentaram também os estoques e
equipamentos, porque dinheiro chama dinheiro e, com mais dinheiro, iam ganhar ainda mais
dinheiro, enquanto as árvores dessem dinheiro.
Mas as árvores pararam de dar dinheiro.
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A Árvore que Dava Dinheiro - Domingos Pellegrini
RandomQuem disse que dinheiro não cresce em árvores? Os habitantes de Felicidade herdaram de um velho sovina uma semente mágica. Nasceu uma árvore de onde as notas brotavam em grande quantidade! A euforia foi geral! Já pensou? Enriquecer de repente, depoi...