As flores

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Não ventou no dia em que as árvores deram flores. O dia estava parado como o ar dentro de
um relógio; as ruas desertas, todo mundo de porta fechada. O sol subiu na cabeceira do rio e
baixou sua luz sobre Felicidade, debaixo do céu inteiro azul; mas ninguém viu, todos olhavam
dinheiro florindo nas árvores. Roíam o que tinha sobrado das unhas; parecia que as notas
levariam anos para cair de maduras e prontas para o comércio.
O açougueiro subiu na caminhonete, deu a partida e reparou que estava numa cidade
deserta; só um cachorro cruzava a praça, O sol cintilando na pelagem negra. O
açougueiro ficou olhando, estava um dia bonito demais.
Então olhou uma mangueira que era sempre a primeira a florir todo ano, e estava florindo:
— Chegou a primavera! — falou sozinho e procurou alguém a quem contar aquilo.
O cachorro olhava para ele.
— Chegou a primavera — disse baixinho ao cachorro: se alguém ouvisse, podiam pensar
que estava ficando louco.
Enquanto isso, Felicidade enlouquecia de impaciência: todos nos quintais, de olho nas
flores atravessadas de sol, com reflexos coloridos no chão; e assim pareciam árvores
enfeitadas de promessas. Nas notas, começando a abrir, as figuras históricas pareciam sorrir.
Todos olhavam com os olhos duros, sem piscar; quando os olhos secavam tanto que ardiam,
então piscavam depressa.
Mulheres em pé torciam as mãos no avental.
Homens trançavam barbantes nos dedos, fumavam um cigarro depois do outro, ou ficavam
afiando canivetes para cortar cavacos de pau-de-vassoura, até o pau virar toco.
Velhos picavam fumo até encher a mão, enrolavam cigarros com capricho.
Velhas ajoelhavam nos oratórios, mantilha na cabeça e terço nas mãos; e as moças, que
antes viviam nas janelas da rua, agora ficavam nas janelas do quintal olhando as árvores.
Crianças levavam coques na cabeça, tapas na bunda: — Deixa eu pegar aquela nota, mãe.
— Nem pensa em relar nela, moleque encapetado!
As notas precisavam cair de maduras, prontas, inteiras, perfeitas; e então esperavam como
um povo antigo com religião de adorar árvore.
O açougueiro era um herege: atravessou a cidade com a caminhonete roncando e tossindo,
como quem entrasse assobiando numa igreja em plena missa.
Quando voltou, de longe viu uma porta abrindo, e um homem saiu depressa. Mal saiu, a
mulher saiu atrás agitando uma nota: — Deu mais uma!
O homem comandou: — Então você vai no açougue, eu vou no armazém.
A mulher viu a caminhonete parando no açougue; correu agarrando o vestido na frente das
pernas, chegou tropeçando nas palavras: — Um filé... por favor, me veja rápido um filé!
O açougueiro ainda descarregava as carnes.
— Calma, dona, parece que vai tirar o pai da forca...!
A mulher ainda agarrava a barra do vestido, pronta para voltar correndo: — É que eu tenho
pressa, o senhor me veja logo o filé.
O açougueiro suspirou, foi abrir a porta do açougue; enquanto caçava a chave do cadeado,
ouviu que batiam portas na cidade: uma aqui, outra ali, e gente saía com pressa.
— Que deu em todo mundo de levantar tão tarde?
A mulher se agoniava: — Pois é, é tarde, me veja logo o filé.
Um homem chegou sem dar bom-dia, perguntou que carne tinha.
— Comprei meio boi — disse o açougueiro —, tem carne de todo tipo.
— Tem filé?
A mulher pulou: — O filé é meu!
O açougueiro coçava a cabeça.
— Vocês sabem o preço do filé?
— Não interessa o preço — disse a mulher.
— Então o contrafilé é meu — disse o homem agarrando o braço do açougueiro, que
suspirou: — Antes ninguém queria filé e nem contrafilé...
— E alcatra, tem alcatra? — a mulher agarrou o outro braço, enquanto ele vestia a capa
ensangüentada para descarregar o traseiro, a costela, o dianteiro. A mulher e o homem iam
atrás: — Também vou levar um pouco de alcatra.
— E me veja também umas costelas.
O açougueiro pendurou as carnes, tirou a capa e vestiu o avental, afiou a faca.
— A alcatra está encomendada desde ontem, dona.
A mulher estendeu a nota novinha: — Eu pago mais.
O açougueiro afiava a faca.
— Não é questão de preço, dona.
— Mas o senhor vai ganhar mais!
— Encomenda é encomenda, dona. Tem visita em casa?
A mulher apertava a nota na mão suada.
— A gente resolveu matar a vontade de carne.
— Mas não vá se matar de comer, dona.
Atendeu os dois, ia bocejar, entrou uma mulher com as mãos apertadas na frente do peito:
— Tem filé? E contrafilé? E coxão-mole? Então me dá.
O traseiro do boi estava pendurado, e o açougueiro tirou o coxão com uma arte de médico,
deitou no cepo a carne sangrenta.
— Quantos bifes, dona?
— Tudo.
Ele pesou: — São seis quilos, dona...
Ela abriu as mãos, estendeu uma nota novinha. Ele embrulhou o coxão, ela agarrou logo e
jogou a nota no balcão: — Pode ficar com o troco.
Assim começou o Dia da Inflação, até que de noite uma mala de dinheiro não conseguia
comprar uma caixa de fósforos.
Primeiro saíam de casa com uma ou duas notas na mão, compravam, voltavam correndo e se
abraçavam diante das compras, abriam os embrulhos para ver se era mesmo verdade.
Voltavam aos quintais e não tinham mais que esperar: as árvores despejavam dinheiro; as
crianças catavam gritando e pulando.
Depois saíam com listas de compras e maços de notas; o marido subia a rua, a mulher
descia. Os armazéns tocavam música, os comerciantes atendiam com toda a família: a mulher
vendendo os panos e aviamentos, ele vendendo as bebidas e comidas, as crianças vendendo os doces; e, quando encheram as caixas-registradoras pela segunda vez, começaram a enfiar as
notas em caixas de papelão. Os felicenses entravam sem perguntar preço, apontavam: —
Quero aquilo.
— Uma dúzia disto. Não, duas dúzias.
— Que é aquilo lá?
— Peixe defumado.
— Dá um quilo. E aquilo?
— Salmão em lata.
— Me dá duas. E aquilo?
— É o tal de caviar, só pra enfeitar prateleira; é muito caro.
— Me dá uma lata; não, três.
— Mas o senhor já comeu caviar?
— Não, mas vou comer até enjoar.
Entrava uma menina com caixa de sapatos: — Enche de pirulito.
Um menino com um saco: — Vende bala por quilo?
Um velho:
— Eu quero um canivete, um rolo de fumo, duas calças, duas camisas, duas cuecas, quatro
meias, um par de sapatos e um paletó.
— Só?
— É a maior compra da minha vida, filho!
Uma mulher: — Aquele vestidinho amarelo, fazendo o favor.
— Embrulho pra presente?
— É pra mim mesma.
— A senhora desculpe, mas esse vestido não cabe na senhora.
— Não faz mal, é só pra ficar olhando... e lembrando.
E, quando só restava uma dúzia de garrafas num armazém, um homem arrematou as doze e
foi para a rua vender pelo dobro: — É só aqui, gente: são as últimas!
Os comerciantes pararam de vender por quilo e dúzia, e dobraram os preços de tudo.
Ninguém reclamou.
A preços velhos, o açougueiro já tinha vendido tudo, mais depressa que nunca.
Chaveou a porta, encheu o cantil com vinho, pegou a vara, meteu o enxadão na terra e
encheu uma lata de minhocas, tomou o rumo do rio. A cidade trepidava. Em alguns armazéns
os donos levantavam as mãos para o céu; e todo mundo queria comprar de tudo.
— Me dá aquele chapéu. É o último?
— Tem mais no estoque.
— Então me dá dois.
— Mas o senhor nunca usou chapéu!
— Quem sabe começo a usar e gosto; então me dá logo três.
As crianças continuavam a catar notas nos quintais. No começo, com medo, enfiavam umas
no bolso, em vez de enfiar nas gavetas de casa; e, então, com o peso da culpa, até pararam de
pular de alegria. Depois, quando enchiam as gavetas e estufavam os bolsos, saíam pela rua
com os cabelos voando, entravam como vento nos bares: — Dá bala!
— Chocolate! Do grande!
— Mais um guaraná!
Os comerciantes aumentavam os preços.
Até que, meio-dia em ponto, a igreja badalou mas ninguém lembrou de almoçar; todos
corriam para cima e para baixo com dinheiro e embrulhos, notas saindo pelos bolsos. Os pais
cruzavam com os filhos lambuzados de doce e sorvete, e os comerciantes remarcavam
gritando roucos: — Lata de sardinha agora a 200!
— Mas comprei por 60 hoje cedo!
— Isso foi hoje cedo, agora é 250.
— Ladroeira! Então me vê mais meia dúzia.
— Pra meia dúzia, sai 300 cada uma.
— Então me vê uma dúzia.
— Cada uma 400.
As prateleiras esvaziavam. Velhos andavam curvados ao peso do embrulho.
Meninos sentavam na sarjeta com doce numa mão, e a outra cheia de balas, pirulito no
bolso, guaraná no meio das pernas. Meninas compravam pacotes e pacotes da bolacha que
dava anéis de brinde, e enchiam de anéis todos os dedos. Moças varejavam na loja de tecidos,
entrando e saindo com panos e rendas; a cidade se coloria: paravam na rua para mostrar as
compras, conversavam depressa e continuavam, formigas em piquenique. Mal botavam os pés
em casa, saiam correndo com mais dinheiro.
O pedreiro de Felicidade saiu de casa com o velho carrinho-de-mão, amassado e manchado
de cimento. Voltou com o carrinho cheio de compras, foi parado na porta de casa por um
homem com fama de pão-duro: — Quer vender?
— As compras?
— Não, o carrinho.
Outro homem entrou na conversa: — Compro tudo.
E começaram a discutir preço, o homem abriu uma caixa cheia de notas: — Fica com todas.
O pedreiro pensou um pouco, cuspiu de lado, arriscou: — Duas caixas.
Um filho do homem vinha com outra caixa: — Enchi mais uma, pai.
O pedreiro entregou o carrinho com tudo, entrou em casa, abriu as caixas na mesa:
— Você já viu tanto dinheiro, mulher?!
— Já. Desde que você saiu, a árvore deu mais que isso. Cadê as compras?
Meio-dia os homens já tinham comprado mantimentos, ferramentas, tralhas de pesca,
sapatos, roupas; então começaram a procurar. Lembraram da serraria: compraram tábuas,
vigas, caibros. Alguns desceram pela beirada do rio, foram comprando os botes dos sitiantes e
chacareiros.
Dois entraram numa chácara. O chacareiro era um coitado de pés no chão e dentes pretos,
encostado na enxada.
— Tem arroz pra vender? — o primeiro homem pegou num braço dele.
— E feijão, tem feijão? — o segundo homem pegou no outro braço.
Ele piscou, pensando, gaguejou: — Tem, tem duas sacas de arroz...
— Eu compro uma — e o primeiro homem encheu de dinheiro a mão do chacareiro.
— Eu compro a outra — e o segundo homem encheu a outra mão.
Um frango passou ciscando.
O primeiro homem: — Quanto quer pelo frango?
Apareceu uma galinha rodeada de pintinhos.
O segundo homem: — Eu levo a galinha!
Iam botando dinheiro nas mãos do chacareiro; ele apertava a dinheirama no peito, a enxada
quase caindo.
Viram umas laranjeiras carregadas: — Eu compro.
— Eu também compro.
O chacareiro falou que nem eram pra vender aquelas laranjas, era laranjeira nascida de
semente cuspida por ali; mas os homens não ouviam: já colhiam as laranjas, os bolsos
entupidos de dinheiro, dinheiro socado nas camisas. Por que pagavam tanto por laranjas ainda
verdes?
Então o chacareiro correu em casa. As crianças brincavam no chão, melecadas de ranho e
terra, e viram o pai erguer o colchão, enfiar dinheiro na palha e sair depressa.
A mulher mexia no fogão com olhos vermelhos de fumaça; perguntou que é que ele tinha, ele
nem teve tempo de responder: ia ganhar muito dinheiro!
Voltou correndo para perto dos homens, aí perdeu a pressa, falou devagar: — Essa carga de
laranja eu ia guardar pras crianças...
Os homens deram mais dinheiro.
— Seja o que Deus quiser — disse o chacareiro coçando a cabeça. — Só quero ver como
vão levar tudo isso.
O terceiro ia ficando coalhado de laranjas.
Então eles compraram do chacareiro um carrinho-de-mão, dois sacos de estopa, uma
abóbora; e o pilão, a foice, o machado, a enxada. Iam saindo com o carrinho cheio e os bolsos
vazios, o chacareiro lembrou: — E o frango e a galinha?
Os homens mediram a situação: o frango e a galinha, só levando mortos.
— Minha mulher mata — disse o chacareiro...
Baixou a vista, catou um cisco no chão.
— ... mata mas cobra.
Os homens remexeram nos bolsos: não tinham mais um tostão. Então cercaram a galinha
num canto, os pintinhos alvoroçaram; um pegou e passou para o outro: — Mata, é só puxar o
pescoço.
— Eu seguro e você puxa.
— Seguro eu, puxa você.
Até que voltaram ao chacareiro: ele fizesse o favor de matar a galinha e o frango, já tinha
ganhado dinheiro como nunca na vida. O chacareiro continuava agachado mexendo ciscos no
chão: — Por isso mesmo, de repente fiquei rico. Mulher minha agora, só trabalha ganhando
bem.
Os homens voltaram para a cidade. O chacareiro entrou em casa correndo: — Mata o
frango e a galinha pra gente comer na estrada, mulher, e vam'bora!
— E os pintinhos, homem?!
— Esquece os pintinhos, mulher, a gente ficou rico!
Ergueu o colchão, mostrou a dinheirama, os bolsos cheios: — Vou comprar terra, vam'bora;
vai fazendo a trouxa, mulher!
E pegava o dinheiro, largava, pegava de novo.
— Vendi até a enxada; nunca mais na vida vou ser empregado...!
Logo estavam na estrada, a caminho duma vida nova.
Passaram pela cidade de olhos arregalados: gente corria com os braços cheios de
mercadorias, e nos armazéns quase vazios os donos trepavam no balcão comandando o leilão:
— O último pacote de açúcar, quem dá mais?
— Dou 500!
— 600!
— 750!
As veias saltavam no pescoço do leiloeiro: — 750 pelo último pacote! Quem dá mais?
Quem dá mais?!
— 800!
Entrava alguém com sacola cheia de dinheiro fresquinho: — Dou 5.000!
E já abraçava o pacote de açúcar, enquanto o leiloeiro ia ficando rouco: — Dou-lhe uma...
5.000! Dou-lhe duas...
Mas três homens se ajuntavam num canto, juntavam o dinheiro dos três e um gritava no
último instante: — 6.000!
O leiloeiro esganiçava: — 6.000 no último pacote de açúcar, quem dá mais?!?
Penduradas no teto, as marmitas esperavam sua vez, junto com vassouras, penicos e
panelas; eram as últimas mercadorias. Afinal, quem ainda queria cozinhar em casa ou comer
de marmita? As prateleiras já estavam vazias. Nos fundos, a dona do armazém ajudava o
marido: enchia caixas de sapato com dinheiro, ia empilhando. De repente começou a abrir as
caixas cheias, começou a apertar dinheiro no peito, de olhos fechados, começou a chorar de
felicidade.
Acabavam os estoques, os felicenses compravam o que sobrava.
— Que que são aquelas caixinhas?
— Agulhas.
— Me dá duas caixas, ou três.
— Mas tem duzentas agulhas cada caixa.
— Me dá quatro. E meia dúzia de penicos.
E assim uma casa ficava cheia de agulhas, outra cheia de botões.
Aqui, muito pano e nenhuma linha. Ali, muita linha e nenhum pano.
Muito sapato sem meia. Muita meia sem sapato.
Caixas de purgante numa casa. Na outra, dúzia de penicos.
Um menino andava pela rua com dois relógios, um em cada pulso.
Cruzou com outro menino com dois relógios num pulso só.
— Quer vender um?
— Também quero comprar mais outro.
— Então me diz a hora.
— Ainda não aprendi.
Numa casa, uma dona sentou diante de vidros e vidros de conservas e geléias, pegou uma
dúzia de colheres novas e suspirou: — Vou experimentar de tudo um pouco.
Começou a destampar vidro depois de vidro, fechando os olhos a cada novo sabor, e
suspirando; até que sujou todas as colheres. Teve de lavar todas de novo, suspirando: — A
gente precisa duma lavadeira de louça.
Um homem experimentava um molinete na rua.
Lançava a chumbada longe, depois recolhia girando a manivela — e, quando o anzol
agarrava nos paralelepípedos, ele fingia que era peixe, fazia pose com a vara encurvada.
Ficou horas assim. O açougueiro não agüentou ficar sem perguntar: — Por que você não vai
pescar no rio?
— Lá dá muito enrosco.
— Mas aí não dá peixe!
O homem estava feliz feito criança com brinquedo novo: — Eu não quero peixe, mas
sempre quis um molinete.
Uma mulher calçou sapatos novos, botou na cabeça um chapéu novo e saiu pela rua com um
vestido velho.
Um velho desfilava de camisa florida, pisando em ovos com botas novas; lenço no pescoço,
chapéu de vaqueiro, calça rancheira. Os outros velhos custavam a crer: — Desmiolou,
compadre?
Ele explicava que não; sempre tinha sonhado ser fazendeiro: — Agora já tenho a roupa pelo
menos.
Batedeiras de bolo e liquidificadores giravam nas casas.
Um rapaz andava gravando conversas no gravador novo; depois sentava no meio-fio para
ouvir, juntava gente para ouvir também.
Gente fazia as malas para viajar.
— Por que ir pro Norte se a gente pode ir para os Estados Unidos da América do Norte?
Faziam as contas: não custavam tão caro as passagens e, afinal de contas, as árvores
continuavam a dar dinheiro!
Mas, naquele mesmo dia, quando o açougueiro voltou do rio com sua fieira de peixes, os
felicenses começaram a perceber que — mesmo com todo aquele dinheiro — era preciso
trabalhar.
— Não vamos passar a vida comprando bugigangas nesta cidadezinha — disse um homem
depois de se empanturrar com as comidas, já meio bêbado de bons vinhos e enfiado dentro de
roupas novas.
— Claro que não — disse a mulher, e começou a fazer as malas.
— Só vamos levar roupa nova — disse o homem.
— E o resto das coisas?
— A gente passa a chave na porta e deixa tudo aí.
Telefonaram para os parentes perguntando por malas e sacolas — ou qualquer coisa que dê
pra carregar dinheiro — e logo estavam todos empacotando dinheiro em todas as casas.
Enchiam gavetas com dinheiro, e esvaziaram latas de açúcar e café para encher de dinheiro,
e tiraram de cima dos guarda-roupas malas empoeiradas para encher de dinheiro, e de noitinha
já acontecia uma caça geral a qualquer caixa ou sacola para dinheiro.
Começaram a cortar lençóis para sacolas.
Um homem entrou num armazém e pediu caixas de papelão. O dono contava dinheiro nos
fundos, gritou que ele pegasse à vontade. O armazém agora era uma ruína de caixas, papéis,
fitas, barbantes esparramados e prateleiras caídas. O último penico tinha sido vendido por
uma fortuna.
Mas logo entrou mais alguém pedindo caixas, depois mais alguém ainda.
O dono teve um estalo; escreveu uma placa e pendurou na fachada: Vendem-se Caixas de
Papelão Entrou, voltou logo e escreveu mais: Vendem-se Caixas de Papelão Preço a combinar
Logo os outros armazéns também vendiam caixas, e o cerealista botou na calçada uma pilha de
sacos de estopa; acabaram num instante, e ele ficou com um saco de dinheiro.
Enquanto isso, as árvores davam dinheiro furiosamente.
As crianças catavam sem parar, entregavam ao pai, que ia separando em maços; a mãe
costurava sacolas com lençol, forro de colchão, capa de travesseiro.
— Todos trabalhavam sem falar, não era preciso: todos os sonhos tinham se afogado
naquele mar de dinheiro, tudo que tinham sonhado era bobagem; podiam sonhar muito e muito
mais, porque dinheiro não ia faltar, e se calavam diante de tanto futuro, engasgavam enchendo
gavetas e vendo dinheiro pelo quintal, no assoalho, escapando para a rua.
Começaram a ensacar só as notas graúdas.
Um homem ia enchendo uma sacola, de repente começou a rir, não parava de rir; a mulher
chegou perto ressabiada: — Que que foi?
O homem ria, ria; ela ajoelhou de mãos juntas olhando para cima: — Meu Deus do Céu, não
deixa ele ficar louco logo agora.
O homem rolava em dinheiro, os olhos marejados de tanto rir, as mãos segurando a barriga,
até que conseguiu falar: — Que louco nada, mulher! Louco eu estava quando pensei em
reformar esta casa!
A mulher suspirou aliviada, olhou as velhas paredes, os móveis mais do que velhos. Subiu
numa cadeira, tirou da parede os retratos dos pais e dos avós: — Sabe o que vou levar quando
sair daqui? A roupa do corpo e isto, mais nada.
Sentou no chão forrado de dinheiro e também começou a rir abraçando os retratos. As
crianças viram a mãe daquele jeito e também começaram a rir.
A vizinha botou a cara por cima do muro: — Estão rindo do quê?
Ninguém conseguia responder, de tanto rir; então a vizinha também começou.
O marido perguntou do que ela estava rindo, ela continuou a rir jogando dinheiro para o ar,
aí ele também começou.
Logo Felicidade toda estava rindo; e a risada de Felicidade ecoava pelos montes, descia o
rio em cascatas de riso. Então o açougueiro entrou na cidade rindo também, encontrou o
bêbado muito sério encostado numa garrafa: — Tem alguma coisa errada.
Bebeu o último gole, tirou do bolso outra garrafa pela metade: — Achei na rua. Tem alguma
coisa errada.
Passou um cachorro com uma corda de lingüiça na boca; o açougueiro ria: — Se estão
todos rindo, está tudo bem. Você não tinha ido embora?
— Voltei de sede — o bêbado se afastou tropeçando — mas agora vou embora duma vez:
tem alguma coisa errada.
As crianças de repente encheram a rua, rindo e pulando, e na igreja um menino se pendurou
na corda dos sinos. Logo as beatas foram saindo das casas, cada uma com uma caixinha ou
sacola, e nunca os santos receberam tanto dinheiro.
Ninguém percebeu que as árvores pararam de dar dinheiro.
Em casa, a mulher do açougueiro ensacava dinheiro e nem percebeu quando ele chegou.
Não tinha comida, e ele saiu de fininho; sempre queria pescar também de noite (dava muito
bagre), mas a mulher nunca deixava.
Então, naquela noite, foi para o rio com fome e feliz.
Quando todos cansaram de rir, lembraram que já tinha passado a hora da janta — e de
repente tiveram saudade do arroz-feijão, enjoados de doces, guloseimas, licores e enlatados.
Foram acendendo fogões, fuçando na geladeira.
— Por que esta cidade não tem restaurante?
— Porque não tinha dinheiro, ué.
— Então amanhã vamos comer fora da cidade.
— Vamos mudar daqui duma vez.
E fizeram a janta fazendo planos. As crianças andavam esquisitas pelos cantos.
— Vai já tomar banho, moleque! Já não mandei?!
— Mandou mas não fui.
— O quê? Pensando que já é homem só porque tem dinheiro?! Já te ensino!
E começaram a apanhar para aprender que nem tudo tinha mudado. Mas, depois da janta, um
menino saiu pela janela, pulou quintais, trepou numa árvore, assobiou. Três sombras pularam
o muro, três meninos treparam na árvore.
— Meu pai tá rico.
— O meu, milionário.
— O meu, bilionário.
— O meu, multibilionário.
— O meu, multibimilharquidário!
— Sabe o que você podia fazer com uma palavra tão comprida?
Uma janela abriu, uma mãe berrou para a noite: — Tonnnniiiiiinho!
Eles sussurravam na árvore: — Não vou.
— Eu vou é fugir de casa. Encho uma sacola de dinheiro e...
— Quando você vai?
— Não sei; só sei que vou.
— Eu também vou.
— Então eu também.
Outra janela abriu, outra mãe chamou; logo, mais outra.
— Se não vier já, vai dormir de couro quente, moleque!
— É a última vez que eu chamo!
— Pode ficar! Mas quando o senhor voltar, já sabe...!
Na árvore, na beirada do rio, no fundo da igreja, nos esconderijos e nos telhados, os
meninos sussurravam: — A gente pega um trem, depois um navio, e some no mundo.
— E um avião.
— Mas vão deixar a gente viajar sem pai nem mãe?
— No trem a gente pode ir no teto do vagão, vi num filme.
— Com dinheiro a gente ajeita tudo.
E as meninas: — Eu quero uma boneca que chora, fala “mamãe”, canta, dança e lava a
louça.
— Eu quero um congelador em casa sempre cheio de sorvete.
— E se o pai comprasse uma sorveteria?
— Eu vou ser artista.
— Você é feia.
— Mas agora sou rica; vou ficar bonita.
As mães cansaram de chamar, apagaram as luzes, esperaram; eles não vieram.
Um pai berrou, um menino apareceu.
— Os outros continuaram firmes: — Covarde.
— Eu também acho que é hora de dormir; cansei de catar dinheiro.
— Covarde.
— Covarde, é? Quero ver se você vai ter coragem de fugir amanhã.
Outro pai berrou, esperou, tornou a berrar; ouviram-se risinhos.
— Não sei mesmo se vou fugir. Tenho medo.
— Meu pai diz que com dinheiro não existe problema.
— Nunca viajei sozinho.
— Também nunca fui milionário.
— É, a gente devia ir.
— Quando?
— Depois a gente combina. Se eu demorar mais agora, meu pai pega a cinta do meu vô.
— É, tá na hora.
Nessa hora, o açougueiro passava de volta. Era quase meia-noite, mas Felicidade ainda
estava acesa, e em muitos quintais havia lanternas e lamparinas ao pé das árvores: — Que
hora elas pararam de dar, você viu?
— Não.
— Nem eu. Que pena!
— Mas a gente colheu dinheiro para o resto da vida.
— Dinheiro nunca é demais.
— Quem sabe amanhã...
— Tomara!
— Por via das dúvidas, e se a gente plantasse outras?
— Onde? Essas aí tomaram o quintal todo.
O açougueiro passava com a fieira de peixes.
Uma janela abriu e uma mulher abriu os braços: — Graças a Deus!
O açougueiro olhou para trás: com quem ela falava?
— Ainda bem que o senhor apareceu!
— Eu?
— É, imagine que, com essa correria, esqueci de comprar carne.
E saiu da janela, escapou porta afora com dinheiro na mão: — Duas dúzias de lambaris e...
quanto o senhor quer pelos bagres?
Outra mulher saiu, veio gritando: — Duas dúzias pra mim também!
Eram bagres de dois palmos e lambaris gordos, brilhantes. Um homem parou perguntando o
preço.
— Não é pra vender não.
O homem insistia: — Faça preço, faça preço.
As mulheres apertavam os peixes, cheiravam, escolhiam. O açougueiro afastou as duas,
repetiu que não vendia.
— Se tivessem pedido, eu trazia de graça.
— Faça o preço — insistia o homem com maços de dinheiro.
— Meia dúzia só — pediam as mulheres enfiando dinheiro na mão dele.
Outra mulher foi chegando com a caixa de sapatos.
— Peixe pra vender?
E abriu a caixa cheia de dinheiro.
O açougueiro não sabia o que fazer com tanto dinheiro na mão, jogou para o ar; o homem e
as mulheres agacharam catando, ele se afastou depressa.
Gente aparecia nas janelas: — Quer vender?
— Compro tudo.
Ele entrou em casa, trancou bem a porta, fechou a janela, sentou suspirando.
A mulher enchia de dinheiro um velho alforje. Ele olhou em volta: — Tô com uma fome de
cachorro corrido. Ainda não tem comida?
Ela nem levantou os olhos: — Não.
Ele foi fritar os peixes, tropeçando em sacolas e caixas de dinheiro.
— Que você vai fazer com tudo isso?
Ela continuava enchendo o alforje, enrolava maços de notas e enfiava com cuidado para
caber bastante. Ele esquentou óleo na frigideira, de repente resolveu jogar os peixes no lixo:
— Amanhã o porco come. Iam me fazer mal, devem estar com mau-olhado.
Comeu um sanduíche, bocejou. Então a mulher falou: — Cansei.
— Vai deitar também...
— Cansei desta vida.
E desabafou que ia mudar de vida, tinha dinheiro para fazer o que quisesse. Ele não; ele,
como sempre, tinha enterrado a bunda no barranco igual um louco manso, pescando feito bobo
o dia inteiro. Então que pescasse, pescasse até o fim da vida, não cansava de pescar, não era?
Então, pescasse! Mas ela não, ela estava cansada, não agüentava mais lavar roupa, limpar
casa, lavar louça, fazer comida, todo dia, todo santo dia, e todo dia ter que fazer tudo de novo;
varrer para depois varrer de novo, lavar para depois lavar de novo, cozinhar para depois
cozinhar de novo, um trabalho sem resultado, uma roda sem fim; não, não agüentava mais,
estava cansada.
— Vou dar um jeito na vida.
— Você quem sabe. Eu só acho o seguinte... — ele começou; e não queria bocejar, mas
acabou bocejando.
— Vai dormir, vai, amanhã você levanta e vai pescar — ela falou com a boca torta de
desprezo.
Ele entrou no quarto, caiu na cama e, pela primeira vez em muito tempo, custou a dormir.
Ouviu quando a mulher se ajeitou no sofá da sala, pela primeira vez no casamento. Mas suspirou: — Amanhã é outro dia.
A igreja badalou meia-noite.
— Amanhã já virou hoje.
E dormiu sorrindo.
Nessa mesma hora o chacareiro passou na estrada com a mulher e as crianças.
Estavam descadeirados de carregar trouxa de roupa e criança no colo. A lua cheia clareava
e ele começou a cortar capim, falando com a mulher mas, na verdade, falando para si mesmo:
— A gente dorme aqui hoje. Amanhã a gente continua até a outra cidade pra pegar ônibus. Não
sei pra onde. Vou perguntar onde tem terra pra vender.
De repente a mulher olhou a trouxa de roupa: — Pra que carregar roupa velha? Amanhã a
gente compra tudo novo na cidade.
Ele olhou para ela admirado: era verdade, eram ricos agora.
Ela abriu a trouxa e foi espalhando as roupas no chão. Para que cama de capim?
Deitavam em cima das roupas, pronto.
— Isso mesmo, mas cuidado com o dinheiro.
A mulher cavucava o saco: — Cadê o dinheiro?
— Botei aí!!
Começaram os dois a procurar. Reviraram, desmancharam a trouxa: o dinheiro tinha virado
farelo entre as roupas.
Amanhecendo, voltaram com as crianças ainda tontas de sono, a trouxa de roupa nas costas.
Um comerciante ia atravessando a ponte com carroça cheia de caixas de dinheiro. O
chacareiro viu as caixas, perguntou se o homem não tinha qualquer coisa de comer, fazia
tempo que as crianças não punham nada na boca; na pressa, tinha deixado na chácara o frango
e a galinha.
O comerciante ia armado de revólver e carabina, resmungou que não tinha nada.
Dedo no gatilho, parou na beira do rio para a mula beber.
O chacareiro olhava todas aquelas caixas, sussurrou à mulher: — Você que sabe ler, lê o
que tem nas caixas.
A mulher soletrou: eram caixas de óleo, bacalhau, ervilhas em lata, chocolates.
O comerciante viu os dois ainda rondando, enfiou a mão numa caixa: — Comida não tenho,
tenho dinheiro; é só catar na cidade.
O chacareiro franziu o nariz como se aquilo fedesse: — Desse aí eu já tive um saco,
esfarelou tudo.
O comerciante olhou para o dinheiro na mão: começava a esfarelar.
Logo a notícia se espalhou e todos pegavam uma nota de dinheiro, corriam até a ponte.
Até a ponte, o dinheiro continuava perfeito e lindo. Depois da ponte, esfarelava num minuto.
Quando o açougueiro passou de caminhonete, viu gente voltando de mãos caídas; uns
choravam, outros olhavam para a frente sem ver coisa nenhuma; e, na beira da ponte, gente
ainda olhava nas mãos aquele farelo colorido. O vento levava aquilo para o rio e os peixes
enganados vinham bicar; logo viam que não era comida e voltavam para o fundo.
Tinham encomendado ao açougueiro oitenta filés, quatrocentos quilos de alcatra, cinqüenta e sete contrafilés e novecentos quilos de costela para churrasco; e ele ia resmungando que a
caminhonete não agüentava tanto peso, não ia agüentar. Quando viu aquela gente na ponte,
parou para perguntar o que tinha acontecido.
Ninguém conseguia falar. Uns falavam sozinhos, outros ficavam olhando o rio, olhando; e
uma velha ria sem parar ajoelhada no chão com um monte de farelo entre os joelhos.
— Hem, que que aconteceu, gente?
Olhavam para ele como se fosse um marciano.
— Hem, gente, que que foi?
Então um menino, ainda tão novinho que só queria brincar, mostrou uma nota na mão:
— Quer ver, quer?
E correu até o fim da ponte, voltou com farelo na mão.
O açougueiro atravessou a ponte com a caminhonete, abriu a caixa com o dinheiro das
encomendas, viu o dinheiro se esfarelar. Mas umas notas velhas não esfarelaram.
— Como é que vou saber quem pagou com dinheiro bom?
Jogou os ombros para cima, ficou assim pensando, deixou os ombros caírem de novo e
despejou o farelo no rio, embolsou o dinheiro e voltou para casa.
Na cidade todos varriam, porque as árvores voltaram a dar dinheiro.

A Árvore que Dava Dinheiro - Domingos PellegriniOnde histórias criam vida. Descubra agora