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A Funcionária Pública
Aquela viagem de ônibus não poderia estar sendo pior para Berlinda Corineus. Não bastasse o péssimo gosto musical daquele motorista magricela, que mantinha o ônibus aos chacoalhos embalado no último volume por uma banda que ela não conhecia, mas desprezava de qualquer modo, a mulher gorda sentada no banco da frente não parava de socar os dedos também muito gordos nos botõesinhos daquele aparelho celular, o qual insistia em emitir os sons mais irritantes que ela já fora obrigada a escutar em todos os seus sessenta anos de vida. Certamente jogando algum joguinho, esse povinho, pensou com desprezo, que não possuia nada com o que se preocupar já que gente como ela os mantinha seguros desde que o mundo é mundo.
Este fato a irritava ainda mais agora com tudo o que estivera acontecendo nos últimos meses. Tudo era culpa do governo, como sempre; quando não há mais a quem culpar, culpe o governo. Não pensariam assim se trabalhassem no governo. Como poderia o governo evitar aquela sequência de tempestades catastróficas que estivera ocorrendo por todo o sul? Como poderia o governo ser o culpado dos altos custos dos alimentos depois que a maioria das plantações foram arrasadas pela seca extrema no norte? Como poderia o governo reforçar a segurança pública quando não havia mais homens para mandar às ruas, mesmo com todas aquelas campanhas de incentivo e altos salários que haviam oferecido?
Berlinda bufou de desgosto, remechendo-se em seu acento desconfortável. O sol já quase se punha, deixando no céu uma mistura com ares paradisíacos de azul, laranja e cor-de-rosa, a qual Berlinda mal notou. Nunca teve olhos para a arte, e estava tentando se concentrar nos primeiros sinais de branquitude da neve que se formava no pico de uma larga montanha ao longe, com esperanças de conseguir tirar um cochilo antes que o ônibus chegasse ao destino. O inverno se aproximava, e ela já tinha quase certeza que não poderia passar as férias com os elfos no sul, tradição que abominaria ter de quebrar. Era quase certo que aquele palerma do regente, Dorran Penwyn, a manteria trabalhando no caso M.
Começou logo após as catástrofes mais recentes, como uma leve dor de dente abafada pela enxaqueca que eram os ataques ao governo pelos jornais. Um troll de médio porte, não muito velho, fora encontrado morto em um largo da pequena Blodau Bore, cidade não muito longe da capital. Havia uma série de ferimentos em seu corpo, mas a causa da morte revelou-se uma forte pancada na cabeça. Trolls normalmente trabalham nas pedreiras, construções, fazendas ou o que quer que exija uma força maior, e por um tempo pensou-se que aquele havia sido um trágico suicídio acidental, já que os trolls são muito burros e vivem se causando auto-contusões.
Contudo, duas semanas depois mais dois trolls foram encontrados mortos, ambos com o mesmo tipo de aprofundamento no crânio causado por uma forte pancada. Um fora encontrado perto da capital, ao lado da estrada principal, deitado como se tivesse sido jogado de qualquer forma por alguma coisa muito forte, já que trolls em sua maioria são tão altos e gordos podem medir até dez vezes o tamanho de um homem normal. O outro fora encontrado caído morto dentro da capital, bem no meio do Curmudgeon Feddw, um dos principais largos da cidade.
Então uma família de duendes relatou o desaparecimento de um de seus membros, Ddrwg Wilkin, muito conhecido na região da cidade velha como Ddrwg, o Travesso – nome que adquiriu após anos de traquinagens e diabruras bem comuns aos de sua espécie. O Travesso apareceu morto alguns dias depois, em um beco escuro da capital, com os mesmos ferimentos encontrados anteriormente nos trolls. Poderia muito bem ter sido assassinado por alguma de suas próprias vítimas, mais vingativa do que ele previra, entretanto não se podia mais negar que algo estava acontecendo.
Berlinda Corineus fora transferida, embora extremamente de contragosto, para o Departamento de Casos Estranhos Envolvendo Criaturas de Baixa Eficiência Mental, onde fora encarregada de trabalhar na investigação das mortes dos trolls e do duende ao lado do incrível porém nada incrível na opinião dela, anão Pratai Beaga, que já havia solucionado alguns mistérios – nada realmente especial – para o governo durante os longos anos como funcionário público, porém de nada mais servia pois já completara oitenta anos e mal conseguia lembrar-se do que tomava no café da manhã.
Os dois não haviam avançado em nada na investigação, e mesmo quando mais funcionários integraram o departamento, a única coisa que descobriram fora um pedaço de couro marcado com a letra M em um lado, e no verso, um pequeno mapa marcando os lugares onde os corpos haviam sido encontrados. E a crise piorara, a cada dia mais homens perdiam seus empregos, o número de mendigos crescia de forma alarmante e o regente perdia seu prestígio. Enquanto isso, outras criaturas continuavam a desaparecer, cada vez em número maior, e Berlinda temia que aquilo não fosse apenas uma pequena gangue de assassinos de criaturas fantásticas.
Um longo excesso de tosse seguiu-se do banco atrás do de Berlinda, levando o pouquinho de sono que ela conquistara embora, para piorar seu mau humor. Se eles soubessem quem ela era, aqueles funduns, se soubessem o que ela sabia, de onde vinha, jamais ousariam portar-se daquela maneira à sua presença.