Capítulo I - O Des(suicídio)

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     ANALEPSE

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     ANALEPSE

     Estávamos em pleno inverno do ano de 1865. A família Suzuki havia acabado de chegar à periferia da cidade de Yonaguni. Era uma família sem grandes posses monetárias e que ao ver abrirem-se as portas numa nova cidade, oferecedora de inúmeras possibilidades de se ter um bom emprego, decidiu abandonar a cidade natal e emigrar. Ao contrário do que possam imaginar, a sensação do abandono da cidade natal não foi dolorosa. A maioria dos integrantes da família Suzuki já haviam morrido, uns, vítimas fatais de tuberculose, outros, devorados simplesmente pela tristeza do esquecimento. Quando me refiro à morte, não se trata apenas de uma morte física, uma vez que as relações desta pequena família eram muitos restritas com os restantes membros da mesma, pelo que muitos deles morreram para os Suzuki no sentido afetivo. 

     Assim que chegaram à cidade, aperceberam-se de que o que lhes haviam contado acerca da facilidade de se encontrar um bom emprego, era na verdade uma realidade fictícia. Era um facto que a cidade era rica. A questão é que existiam grandes desigualdades económicas. Ora existiam pessoas muito abastadas, ora existiam pessoas residindo em bairros de lata. No início, a família Suzuki optou por habitar num bairro de classe média-baixa, que ficava junto à periferia da cidade, numa zona onde a sinistralidade era uma constante, o que atormentava bastante a senhorita Yoki, mãe de Yuji, que costumava ter premonições noturnas um tanto negativas. As poupanças aproximavam-se do fim e a fome começou, pouco a pouco, a fazer-se sentir no ceio desta pobre família. Após longos meses de procura, Hideki, pai de Yuji, conseguiu finalmente encontrar um emprego. Quando lhe perguntavam informações acerca de onde trabalhava, eram bastante percetíveis as alterações repentinas que se faziam sentir no seu temperamento corporal, pelo que Hideki preferia não responder. 

     Num dia como tantos outros, Yuji decidiu aventurar-se pelas minúsculas ruas da cidade de Yonaguni. Gostava de encontrar um amigo, alguém com quem pudesse partilhar os seus medos, mas também a sua felicidade e alegria de viver. Não conseguindo encontrar um amigo, Yuji acabou por criar um companheiro imaginário. As pessoas observam-no com feições de desdém, sabe-se lá porquê. Enquanto caminhava solitariamente, Yuji avistou um pobre animal, que estava aparentemente doente. Era um cão. Foi então que decidiu levá-lo consigo de volta a casa a fim de curá-lo. No caminho de regresso, pareceu-lhe ouvir uma voz familiar que gritava ferozmente em consonância com alguns sons estridentes de inúmeras balas. Aproximou-se. Quando se apercebeu da mísera situação que os seus olhos viam, caiu, lentamente, até que se fixou numa posição de joelhos a chorar. O cão que se cruzara com ele há pouco mais de vinte minutos, parecia também sofrer com o sofrimento de Yuji. O que Yuji viu foi claro. O seu pai, Hideki, disparou uma bala em direção ao peito de um homem que ele não conhecia. Matou-o. Após ter caído em si, Yuji desatou a correr com o seu novo amigo. Por motivos diversos, preferiu não contar o que vira à sua mãe, devido à sua frágil saúde. 

     Todos os dias acordava e observava o seu pai. O sentimento de ódio ia desaparecendo à medida que as imagens daquele acontecimento se iam desintegrando da sua memória. Era inevitável, pensava ele. Por mais que se esforçasse para esquecer toda aquela situação, por mais que tentasse, nunca a conseguiria excluir totalmente da sua memória. O facto de possuir em si um segredo que poderia eventualmente desmoronar toda a harmonia existente na sua família, deixava-o um tanto louco. As insónias tornaram-se uma constante, que estava cada vez mais difícil de evitar. Yuji perguntava-se inúmeras vezes se o seu pai poderia eventualmente ter conhecimento de que ele sabia do sucedido, uma vez que os seus comportamentos estavam ultimamente um pouco diferentes. No entanto, não ousava perguntar-lhe. 

     Numa noite fria, em que, por falta de cobertores, Yuji e o seu fiel companheiro se aqueciam um ao outro, surgiu um barulho estranho. Era a senhorita Yoki que aparentemente estava a ter um dos típicos sonhos que costumava ter. Na manhã seguinte, quando acordou, Yuji, e por saber que a sua mãe estaria provavelmente num estado de ânsia enormíssimo, decidiu preparar-lhe o pequeno almoço. Quando foi para abrir a porta do quarto dos pais, o tabuleiro escorregou-lhe das mãos, tendo Yuji tropeçado. Quando abriu os olhos, estava perante o corpo dos seus pais, no chão. Mortos. Era evidente a dor de Yuji, que parecia agora ter perdido todo o ódio que tinha pelo pai. Parecia-lhe ter visto algo na mão de Hideki. Era um papel escrito. Desdobrou-o e leu-o em voz alta, a soluçar com o choro: ''Para Yuji-chan''. Começou a ler o papel, que apesar de legível, possuía algumas manchas de sangue que o tornava um pouco menos percetível. 

     A carta dizia: ''Filho, eu sei, eu sempre soube... Se estás a ler esta carta, quer dizer que já devo estar num outro lugar que não este. Eu gostaria de ter-te explicado tudo, mas não podia. Não podia, nem posso! Se eu te contasse o que sei, sofrerias como eu sofri, morrerias como eu morri. Prefiro manter-te em segurança, segurança essa que passa pela ignorância em relação a este assunto. Não queiras vingar-te. Mas antes de mais, deixa-me dizer-te uma coisa. O que tu viste, não é mentira. De facto, eu matei aquela pessoa. Matei-a porque se não o tivesse feito, tu não estarias provavelmente a ler esta carta que te deixo como um resumo de tudo o que passámos juntos. Para além desta carta, poderás também encontrar na segunda gaveta do armário de pau preto da tua mãe um cofre. Abre-o, a chave encontra-se no meu bolso. Acredito que sintas repugnância em tocar-me, mas é realmente importante que o faças. No seu interior, estão ¥ 6.000.000, bem como algumas fotos e recordações da nossa família. Deixei-te também um amuleto bastante antigo. Foi utilizado por oito gerações da nossa família e foi-me dado pelo teu avô. Lamento que nunca o tenhas conhecido. Promete-me que não o perdes, por favor. Com o dinheiro que te deixei e que acumulei nestes últimos tempos, sobreviverás, mas fá-lo longe daqui. Com as fotos que te deixei, espero que eu e a tua mãe possamos também sobreviver intactos nas tuas memórias. Amamos-te muito, Yuji-chan.'' 

     Por momentos, pensou em suicidar-se. Subiu até ao cimo do prédio em que vivia, mas... Algo lhe disse que devia...

Kuro-Obi: A Doce Melodia da SolidãoOnde histórias criam vida. Descubra agora