ANALEPSE
Algo lhe disse que devia persistir. Ao que parece, o amigo imaginário que Yuji havia criado na sua mente, não o estava a ajudar. Limitava-se a observá-lo de fora: a aplaudir as vitórias e a censurar as derrotas. Yuji era ainda muito novo para se aperceber de que na verdade esse amigo imaginário, era nada mais nada menos que a sua consciência a apelar por ajuda. Arrependido, levantou-se e caminhou em direção às escadas do prédio. A cada degrau que descia, jorrava-lhe uma lágrima que percorria o seu rosto pálido e que findava o seu trajeto num dos incomensuráveis degraus que existiam no edifício. Era fascinante o som que resultava do embate das lágrimas nos degraus, som esse que ecoava infindavelmente por todo o vácuo espiritual presente no coração daquele pobre rapaz. Era notória a melancolia que o seu corpo transportava a cada passo que dava. Pouco a pouco, Yuji foi-se demonstrando mais frustrado. No fim de contas, ele era apenas uma criança de oito anos, órfã.
A primeira vitória de uma batalha perdida numa guerra por vencer, deu-se a partir do momento em que Yuji abriu a porta do seu prédio e pisou a relva macia do seu bairro. Observou o céu, inspirou e expirou. As inspirações que dava eram como que novas aprendizagens que atravessavam o seu eu, aquando que as expirações se comportavam como que expulsões de todas as ideias e pensamentos negativos que por momentos quase o levaram a cometer um dos maiores erros da sua vida, senão o maior... Quem sabe? Ironia. A sua vida era de facto bastante irónica. Há algumas horas estava a divertir-se, tendo por acaso encontrado o seu novo companheiro – Kuri, o cão com os olhinhos cor de avelã -, e agora? A sua vida fora saudada com uma enormíssima tempestade.
Kuri estava doente, pelo que era estritamente necessário que Yuji se dirigisse com a maior urgência possível a um veterinário. Tinha agora em sua posse bastante dinheiro, tendo o seu primeiro investimento passado pela cura do seu fiel amigo. E assim foi. Explicou a sua drástica situação à rececionista, que pareceu reagir neutralmente, talvez devido à frequência com que esse tipo de acontecimentos se sucedem por aquelas bandas. Logo após ter saído do veterinário deu por si a questionar-se para onde deveria ir. De repente, lembrou-se do que lhe havia dito um dos seus colegas da sua antiga cidade. Esse colega ter-lhe-ia afirmado com clareza que se se voltasse para norte, estando em Yonaguni, avistaria a Montanha Hiei.
Conta a lenda que todo aquele que lá pôs os pés morreu, ou, na melhor das hipóteses, regressou sem uma ou duas pernas, ou até mesmo sem braços. De facto, dada a sua atual situação, não perderia nada se morresse. Creio ter sido a partir deste exato momento que Yuji reconheceu a insignificância da palavra vida, insignificância essa que passa pelo sentimento de estar morto, estando simultaneamente vivo. Antes de partir para a sua longa jornada, parou numa mercearia e numa pequena loja de excentricidades, onde comprou alguns alimentos, água e um wakizashi – um punhal com o cabo curvo, que se assemelha a uma catana. Mais uma vez o mundo pareceu agir com neutralidade. Quem é que no seu perfeito juízo venderia uma arma branca a um rapazito de oito anos? Logo após ter em sua posse o material que necessitava, colocou-o na sua mochila e partiu. Em pouco mais de dez horas, chegara à Montanha Hiei.
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Kuro-Obi: A Doce Melodia da Solidão
Misterio / SuspensoA Doce Melodia da Solidão trata-se de uma história que gira em torno de um estudante do ensino secundário, cujo nome é Yuji Suzuki. Yuji teve uma infância extremamente conturbarda, na medida em que perdeu os pais com apenas oito anos de idade, que f...