vinte e sete.

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Ruídos normais, do dia a dia, tomavam conta do jardim. Crianças brincavam em
algum ponto da rua, um cachorro corria atrás da bola. Dentro de Megan, nada
parecia normal. Ela estava isolada de tudo, uma estranha olhando para dentro.
Ou talvez o contrário.
Desdobrou a carta, alisando as marcas profundas que tinham ficado no
papel. Parecia um monte de quadradinhos grudados uns nos outros, meio mal-
ajambrados.
Que nem eu.
Olhou para trás, para a própria casa, e viu o pai na cozinha. Estava ao
telefone. Provavelmente falando com a mãe. A voz dele chegava pela janela,
batia papo como se nada tivesse acontecido. Ou tudo.
A carta voava de leve na brisa, parecia querer lembrar Megan de sua
presença. Não fazia sentido não lê-la. Não podia doer mais agora do que no dia
em que chegara. A menina se encostou na árvore, os galhos estavam cheios de
folhas, que já mudavam de cor. Uma ou duas tinham caído no chão. As coisas
estavam seguindo em frente. Abriu a carta, alisou-a bem.

Cara senhorita Bright,
Minha mãe pediu que eu lhe escrevesse e contasse que Jackson
perdeu sua batalha contra o câncer na semana passada. Ela achou que você
gostaria de saber e pediu: você pode contar para Megan? O hospital fez tudo o que podia por ele, mas, como diz a minha mãe,
Deus tinha outros planos para Jackson, e precisamos aceitar isso. Estamos
tentando não ficar tristes. Jackson não ia querer isso, mas temos muita
saudade dele, do seu bom humor, do seu sorriso. Você o conheceu, então
sabe do que eu estou falando.
É muito difícil para a minha mãe, é claro, mas ela quer que eu lhe
transmita esta mensagem:
Jackson falava de Megan o tempo todo. Todos achamos que ela tornou
a doença e o fim de sua vida muito mais fácil. Megan estava lá com ele, em
sua cabeça e em seu coração, e agradeço a Deus pela alegria que ela lhe
proporcionou e por tê-lo ajudado a enfrentar aquela situação. Ela estava lá
quando ele precisava, e isso o deixava feliz.
Por favor, diga para ela que somos muito gratos por isso. Esperamos
que Megan esteja bem e continue bem.
Em nome de Elvira Dawes,
Josephine Dawes.

A letra era perfeita, parecia que Josephine Dawes escrevera com todo o
cuidado, como se a senhora Dawes, redonda como uma bola, tivesse ficado atrás
da filha, dizendo exatamente o que escrever, que palavras usar e de que maneira.
Eram dizeres simples e objetivos. Sem esconder nada, sem querer que nada
parecesse melhor do que era. As duas deveriam ter ficado com o coração
despedaçado só de fazer isso. Devia ter sido um grande sofrimento ter de mandar
essa carta.
Megan ficou olhando para aquelas palavras, para absorvê-las, para sentir o
trabalho que dera escrevê-las, o respeito, o amor. Porque a família de Jack o
amava, sim. Em algum momento ela tinha esquecido disso. E eles o perderam.
Não era de admirar que o pai estivesse bravo, já que a mãe e a irmã de Jack
tiveram que se sentar e escrever aquelas palavras, e a filha se recusava a lê-las.
Por fim, dobrou a carta com muito cuidado, seguindo as marcas que a mãe
fizera.
Não era uma carta horrível. De jeito nenhum.
Era uma carta adorável.
Não a odiava, nem um pedacinho dela, nem mesmo as palavras que
diziam que Jackestava morto.
Quando a colocou de volta no bolso, Megan encontrou outra coisa. Era o
desenho que terminara de fazer na noite da cirurgia dele. Um pouco maior do
que uma foto 3 × 4. Recortara-o e o mantinha perto dela desde que a carta
chegou, um ritual para lembrar do garoto, regular como escovar os dentes ou lavar o rosto. Mesmo assim, recusava-se a olhar para o desenho, do mesmo
modo que se recusava a ler a carta.
Ficou chocada quando se deu conta do quanto ele estava amassado. Se
continuasse a andar com ele por aí, o desenho ficaria destruído. E aquilo era tudo
o que ela tinha de Jack.
Olhou para o papel sob o sol da tarde. Conseguira capturar um pouco da
vida que havia nos olhos dele, a felicidade que irradiava de seu rosto, parecendo
que jamais o abandonaria.
– Você era novo demais – sussurrou.
Parecia que Jack não ligava de ser novo nem de ser amassado, nem de
ficar no bolso dela. Era como se dissesse:
Beleza.
Não se preocupe comigo.
Eu tô bem.
Tô num lugar onde as abelhas não picam,
e o sol não arde,
e não existe mais encrenca nem dor.
Megan ficou olhando para o desenho, absorvendo as linhas e as curvas do
rosto do garoto, até seus olhos e sua cabeça, seu coração e sua pele ficarem
tomados por ele, que jamais seria apagado de sua memória, capturando seus
ecos, suas lembranças, para que Jack estivesse com ela de novo.
Um movimento na cozinha. Megan se virou e viu o pai olhando para ela
pela janela, querendo que tudo estivesse bem. Partiria em algumas horas e
queria que a filha pegasse o trem com ele. Parecia tão sozinho parado ali, tão
preocupado.
Se ela pudesse dizer que estava bem, pudesse mostrar que era verdade, o
pai se sentiria melhor, ele, a mãe, o avô, e todas as pessoas que andavam
preocupadas com ela se sentiriam melhor. Só estavam tentando seguir em frente,
como se tivessem tido câncer também. Mas não seguiriam em frente, não sem
ela. E era assim que as coisas ficariam, assim que seriam, até Megan dar o
toque, fazer o sinal.
A decisão estava em suas mãos.
O ar estava parado. Nem uma folha se mexia. Nada de pássaros nem de
ruídos. Era como estar dentro de uma bolha de novo, com o mundo ao seu redor
implorando para entrar. Ela tinha que deixar o mundo entrar. Tinha que dar o
toque, fazer o sinal, assumir o controle de novo.
Não era tão difícil pegar o trem com o pai, ir à festa, comemorar.
Não era tão difícil escrever para a família de Jack, agradecendo por terem
se dado ao trabalho de mandar a carta. Talvez pudesse mandar o desenho para
eles. Uma cópia.
Poderia fazer tudo aquilo. O ar à sua volta se mexeu, como se tivesse recebido permissão para isso.
Uma brisa leve sacudia as folhas, fazendo-as voltar à vida.
Mas só tinha uma coisa.
Nada daquilo podia acontecer até ela falar com Gemma, contar tudo.
Precisava começar por Gemma.
Megan pegou o celular. Foi o primeiro número que apareceu. Sempre foi
assim. Sempre seria.
– Gemma?
Houve um instante de silêncio, como um intervalo entre um relâmpago e
um trovão, um instante em que você fica esperando o estrondo não ser tão alto,
tão assustador. Ficou imaginando se Gemma não ia simplesmente desligar o
telefone, recusar-se a atender. Megan não a culparia, não ficaria surpresa. O que
merecia além disso?
– Oi – a voz de Gemma saiu baixinha, indiferente. – Então você ainda não
foi viajar?
Parecia uma acusação.
– Vou no trem das seis – era verdade. Chega de mentiras. – Preciso fazer
as malas e tudo, mas...
Um motor de carro rugiu e, em seguida, uma nuvem de pássaros explodiu
na árvore da casa vizinha. Megan nunca tinha visto tantos pássaros voando de
uma vez só. Ficou observando-os derreterem no céu como se nunca tivessem
existido.
– Você ainda tá aí? Megan?
– Desculpa. Tô sim. Eu queria perguntar... se eu posso ir aí. Bem rapidinho?
Quando eu terminar de arrumar minhas coisas.
– Tá... – Gemma não parecia ter muita certeza, como se aquilo pudesse ser
uma piada de mau gosto e não confiasse mais em Megan. Logo ela, a sua melhor
amiga e tudo o mais.
– É que... eu preciso te contar uma coisa.
Então Megan começou a chorar, porque se deu conta, tão de repente
quanto aqueles pássaros saíram voando daquela árvore, de que Gemma teria
entendido se ela tivesse contado antes.
Semanas antes.
Meses antes.
Ela saberia o que dizer.
Não tinha nada a ver com ter câncer ou um tumor maligno ou fazer
quimioterapia. Aquelas coisas das quais as amigas dela tinham medo. Tinha a ver
com um menino, simples assim. E elas poderiam ter rido juntas com a história de
Jack, de todas as coisas que ele disse e fez, e de todas as encrencas nas quais ele
se metia.
E então teriam chorado juntas.
Ela teria se sentindo melhor.
Mas agora estava ali, sozinha. Chorando.
– Megan? O que que foi? Estou indo aí. Já – Gemma. Magoada e
esquecida. Gemma, que não suportava ver ninguém chateado, muito menos sua
melhor amiga.
– Não, tá tudo bem... eu preciso... te falar de alguém que eu conheci – disse
Megan, enfim, passando a mão devagar sobre os olhos. – Alguém do hospital.
Mais um instante de silêncio. Como se fosse Gemma quem estivesse
tentando montar um quebra-cabeça impossível, como Megan fizera, e tivesse
encontrado agora a peça que faltava.
– Qual o nome dele? – perguntou Gemma, com um tom gentil. É claro que
ela sabia que tinha a ver com um menino, mesmo que ninguém tivesse contado.
O mundo pareceu se mover naquele instante, como se tivesse sido tirado do
lugar por algum terremoto ou vulcão terrível. Estava voltando ao lugar onde
deveria estar. Mas nunca seria exatamente igual. Como poderia ser? Mas, por
algum motivo, aquilo já era o suficiente.
– Jackson – Megan começou a falar, como se tivesse uma longa, longa
história para contar. – O nome dele era Jackson Dawes.....

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