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Eram mais de onze horas da noite. Megan deveria estar dormindo, mas sua
cabeça não parava de funcionar. Tentou ler de novo, tentou desenhar, tentou ficar
tão quieta quanto possível, esperando que o sono viesse, mas ele não veio. Por
fim, levantou da cama e saiu andando pelo corredor.
A sala de espera para os visitantes estava escura, exceto por um brilho
prateado meio apagado que vinha do lado de fora e por uma réstia de luz dourada
que uma luminária projetava na mesinha do canto. Megan acabou entrando,
abandonando seu plano inicial de dar uma caminhada. Parecia ser tão
confortável ali, tão sossegado.
Tentando fazer o suporte do soro entrar em acordo com as cadeiras e com
a mesa de centro, conseguiu chegar até a janela e olhou para o rio, as ruas, os
prédios, tão agitados à luz do dia, tão diferentes à noite. Tudo se esparramava dos
portões do hospital pra lá, como se fosse um cobertor reluzente que envolvia
aquele outro mundo, aquele onde sua mãe vivia, do qual lhe trazia pequenos
fragmentos de informação – sobre o cachorro do vizinho, as telhas de metal da igreja que foram arrancadas, o supermercado novo que finalmente tinha sido
inaugurado e no qual não pôde deixar de dar uma passada. A mãe poderia até
estar falando de uma viagem para Marte. Megan ouvia e tentava parecer
interessada, mas só queria que a mãe fosse embora. E isso a fazia se sentir mal,
ingrata. Mesmo agora.
Apagou a luz para que a sala ficasse quase na escuridão. De algum modo,
aquilo a fazia se sentir melhor, a fazia esquecer da mãe, fazia tudo o que estava
do lado de fora do hospital brilhar ainda mais.
A cidade estava bem acordada. Fios de ruas bem iluminadas se estendiam
em todas as direções, parecendo uma plantação estranha num campo negro.
Chegavam bem longe. Carros se movimentavam de forma intermitente. Quem
era toda essa gente que estava dirigindo? Para onde iam a essa hora da noite?
Uma brancura esfumaçada transbordava dos postes de luz da redondeza,
lembrando uma rede que capturava sombras estranhas: uma pessoa aqui, um
animal ali. Mister Henry, quem sabe. Se é que ele existia. Devia estar vagando
pela cidade, naquele exato momento, procurando ratos.
Um trem atravessou a ponte sobre o rio e desapareceu. Megan sentiu
vontade de estar nele. Um ônibus passou pela rua que ladeava o hospital.
Também servia, se fosse levá-la para casa.
Um avião rugia por cima do hospital. Se estava aterrisando ou decolando,
ela não soube distinguir. Ninguém naquele avião, ninguém naquele mundo
debaixo dela, naqueles carros, nem o trem, os ônibus ou as sombras sabiam nada
sobre ela. Era insignificante como uma formiga, apenas alguém olhando pela
janela. Alguém que não tinha recebido a visita das amigas.
Dois dias inteiros.
“Era por causa da escola”, disse Gemma, numa mensagem de texto. “Era
por causa da lição de casa”, falaram as Gêmeas. Era por causa de todas as
coisas que elas faziam quando não estavam na escola. E o hospital era tão longe.
Prometeram que, quando ela voltasse para casa, a visitariam todos os dias. Não
ia demorar muito. ☺ ☺ ☺ ☺ ☺
Jack tinha razão. Megan quis odiá-lo por isso, mas não conseguiu. O garoto
tentou alertá-la, mas ela não dera ouvidos. E sentia saudade das amigas do
mesmo jeito que Kipper sentia falta de seu gatinho. Tanta que chegava a doer.
A lua apareceu de repente na janela, saindo de trás de uma nuvem.
Parecia uma bola de gelo, iluminando a sala, tornando as paredes anêmicas
ainda mais exangues, mais sem cor, os contornos das cadeiras azuis ainda mais
sombrios. De alguma maneira, suas bordas gastas, acabadas, lembravam feridas
abertas. Megan enxugou os olhos. Era ridículo chorar, mas não tinha conseguido
evitar.
Um movimento na escuridão a fez soltar um gritinho.
– Shhhhhhh! – disse Jack.
– Para de assustar os outros!
– Não estou assustando ninguém! Este esconderijo é meu, sabia?
– Hoje não – foi o que a garota conseguiu dizer. – E eu não estou me
escondendo.
Jackchegou bem perto dela.
– Pelo menos dá pra você dividir o lugar comigo?
Megan não conseguia mais falar, não queria chorar na frente dele, não
queria ser tão fraca, tão ridícula, mas também não conseguia evitar nenhuma
dessas coisas. E, de uma hora para outra, tinha voltado a pensar em Kipper.
Pobre princesinha alienígena. Por que continuava aparecendo em seu quarto? E a
mudança de nome? O que significava aquilo? Claro, por que não? Talvez mudar
de nome fizesse você se sentir melhor por estar doente, presa numa ala de
hospital. Dava para fingir que aquilo estava acontecendo com outra pessoa, e não
com você.
Se ao menos Megan pudesse mudar o seu nome. Ser outra pessoa.
– Estou fazendo você se sentir pior? – disse Jack, num tom suave. – Quer
que eu vá embora?
Megan teve de levantar a cabeça para vê-lo. Sentia-se uma anã perto dele,
de tão alto que ele era. Mal batia em seu ombro. Havia algo em sua altura que
lhe conferia força e firmeza. Era sólido como uma rocha, algo que nunca iria
ruir ou falhar com alguém.
Não, não queria que ele fosse embora.
– Tudo bem – disse.
– E então... O que tá acontecendo?
– Sei lá.
Megan queria tanto encostar a cabeça no braço dele, deixá-la ali, só por
um ou dois segundos. Sabia, sim. Tudo estava acontecendo. Esse jeito dele, que
conseguia estar tão feliz e animado o tempo todo, enquanto ela estava tão brava e
chateada. Não acreditar no que havia dito sobre suas amigas. Mas ele sempre
teve razão. Não queria que o garoto ficasse perto dela. Mas, na verdade,
precisava dele mais do que tudo. Especialmente agora.
– Ei – Jack se aproximou. Os suportes de soro bateram um no outro,
fazendo um ruído surdo. – Não se preocupe, seja lá o que for.
Então passou o braço pelos ombros dela, quente como um suéter, puxando-
a para tão perto que ela se derreteu e tomou a forma dele. Tão perto que a
clareza da luz da lua, o brilho excitante da cidade e os fios de ruas iluminadas,
tudo se tornou apenas um borrão. Megan não conseguia ver onde ela terminava e
ele começava, mas isso não tinha a menor importância. Nada tinha a menor
importância.
– Obrigada – disse Megan, depois de um tempo. Seus olhos estavam
inchados e doloridos de tanto chorar.
– Pelo quê?
– Não sei. Por estar aqui, eu acho...
Mas era por mais do que aquilo. Era por tudo o mais.
Era por Jack fazê-la sentir que tudo bem se ela chorasse. Era por ele fazer
tudo parecer só aquele tantinho mais simples, menos complicado. Era por Jack
fazê-la se sentir segura, ali, na frente da janela, na escuridão do céu que a
envolvia.
Por fim, Megan se afastou, tirando o braço dele com uma leve sacudida
dos ombros.
– A gente devia voltar, eu acho. Antes que nos encontrem.
– Deixe que nos encontrarem. O que vão fazer? Nos expulsar? Mandar a
gente de volta pra casa? – Seu rosto brilhava ao luar. Ele sorria.
Era um sorriso sincero que, para variar, não ria dela. Megan sabia que Jack
estava tentando ser seu amigo, tentando ajudar, já que Gemma não estava lá
para conversar, as Gêmeas não estavam lá para fazer piadas bobas sobre tudo,
como se soubessem o que é estar num hospital, o que é ter câncer.
Então deu um sorriso choroso para o garoto.
Ele realmente era tudo o que tinha. Precisava ser legal com ele, precisava
parar de tratá-lo como se ele sempre estivesse atrapalhando. O garoto se inclinou
em sua direção, como se soubesse de tudo aquilo. Megan podia sentir o hálito
dele em seu rosto, um hálito de limpeza, de creme dental.
– Vamos ficar aqui – sussurou ele, como se isso fosse resolver tudo.
Mas como poderia resolver?
– Onde mais a gente pode ir? – perguntou Megan, supreendendo-se com a
amargura que começou a sentir de uma hora para outra. – Só tem essa droga de
ala, essa droga de lugar – as palavras saíram em pequenas explosões, como se
Jacktivesse culpa de tudo, o que ele claramente não tinha.
Mas a menina não conseguia se controlar.
A raiva não passava. Ficar ali significava que ela não tinha saída, tinha sido
sugada por aquele hospital, pelo mundo de Jack, e acabaria como ele, sempre se
metendo em encrenca, ou como Kipper, triste por causa de um gato.
Megan não queria se meter em encrenca, não queria ficar triste. Queria
ser normal, estar longe dali e não ter mais câncer. Era uma droga. Aquilo tudo. E
Jacknão podia ajudar. Ninguém podia, e não fazia sentido ficar ali.
Foi aí que ele inclinou o rosto e a beijou com o mais suave toque dos lábios.
A garota se afastou.
– Para.
Jack ficou bem parado, como se alguém tivesse apertado pause. O ar entre
eles quase estalava. Megan não sabia dizer se ele estava magoado, achando graça ou com raiva. Seria fácil despausá-lo, seria fácil senti-lo perto de novo
através do tecido fino do robe, absorver cada respiração dele. Seria fácil beijá-lo
também.
Mas não.
Aquilo não estava certo. Nada estava.
O espaço entre eles foi ficando cada vez maior e mais profundo, como um
cânion. O ar esfriou.
– Tudo bem. Eu entendo – disse Jack.
– Não! Você não entende. É que... – as palavras não saíam. Ela sentiu um
vazio ainda maior por dentro.
Mas não era para se sentir pelo menos um pouquinho feliz por querer
beijar alguém?

Uma Cancão Para Jack Onde histórias criam vida. Descubra agora