Já ouvia os trovões, observava da janela as pessoas agitadas fechando as tendas de frutas, era engraçado seus semblantes assustados.
Resolvi arrumar minhas roupas, trouxe quase todo meu guarda-roupas, realmente não consigo escolher algumas poucas peças, sempre carrego três pares caso aconteça algum imprevisto.—Fiz café, você pode se juntar na mesa se quiser. -Disse a senhora até então dona da pensão, admirei-me por ter batido na parede ao invés da porta ao entrar em meu quarto.
Larguei minhas roupas desdobradas em cima da cama e fui com ela até a mesa, pelo corredor estreito me mostrava as fotografias batidas por seu falecido marido. Eram lindas, pareciam pinturas feitas com a melhor tinta, todos os tons se mostravam agradáveis aos olhos, realmente lindas obras de arte.
—Sente-se, vou pegar o bolo de maçã. -Abriu o forno de seu fogão de lenha retirando uma forma redonda, seu cheiro estava tão sedutor que era capaz de satisfazer a fome apenas pelo seu aroma.
—Apenas a senhorita e mais um hóspede aceitam meu convite para o café, desconfio que a maioria não gosta muito de senhoras donas de pensão.
—Bem...talvez as outras pessoas não sejam tão sociáveis. -Lembrei-me logo de cara do rapaz que conduzia a carroça, um poço de antipatia.
—O cheiro está muito bom, aposto que o sabor deve estar ainda melhor. —É tão jovem, mas tens sabedoria. Aposto em sua aposta! -Riu cortando um pedaço médio e colocando em um pratinho azul florido. Mordi o pedaço até então um pouco quente, apenas fiz uma expressão maravilhada, a senhora entendeu o recado.
—Desculpe a intromissão, mas o que veio fazer aqui nesse fim de mundo? -Perguntava me olhando e rindo.
—Minha mãe sempre evitava falar sobre o passado, nunca se deu o trabalho de me contar quem era minha vó, minhas tias...na verdade ela nunca contou nada. Até sobre sua infância ela evita falar, ao menos me contou que meu pai e ela se conheciam desde crianças. Mas seu nome ela evita citar. Talvez eu tenha me iludido em pensar que vir até aqui iria mudar algo, sinto como se fosse muito difícil eu conseguir encontrar alguém da família, pois ninguém me conhece. -Me pareceu certo compartilhar isso com essa senhora, algo nela me trazia uma paz interior inexplicável.
—Mas sua mãe não lhe deu nenhum objeto para que possa começar a procurar algum familiar?
—Me deu umas fotos, posso mostrar se quiser ver. -Na hora ela fez sinal positivo com a cabeça. Me levantei no mesmo minuto e fui em busca da caixa. —Aqui está.
Ao pegar a foto que antes eu mesma olhava logo sua feição mudou bruscamente, ficou pálida, parecia espantada, como se visse um extraterrestre em sua frente ao vivo em cores.
—Tudo bem? -Indaguei com voz trêmula, acabei me espantando com a cara que tinha ficado, nunca vi alguém se assustar tanto assim em minha vida.
—Amélie! É a Amélie, tenho certeza disso! -Parecia que não me ouvia, apenas falava dessa tal Amélie. —Essa senhora da foto, Amélie, era maldosa, queimou minha antiga casa por ciúmes, fez a vida de sua filha um inferno, boatos que trancava a menina no quarto. A filha dessa bruxa era apaixonada pelo garoto que cuidava da plantação da fazenda, essa velha sem coração jamais aceitou isso, a gota d'água foi quando a garota apareceu grávida, sem pensar nas consequências ela fugiu de casa junto com o pai do bebê, não sei direito o que aconteceu mas ele não apareceu para ir com ela. Amélie jurou que se sua filha voltasse ela a mataria.
Fiquei horrorizada, talvez Amélie poderia ser minha avó, pois minha mãe só havia me recheado de fotos dessa senhora. Talvez seja por isso que nunca tocou no assunto do seu passado. Lamento ter julgado ela, mas devo saber também o outro lado da história.
—Amélie pode ser minha vó? Isso é uma possibilidade? -Perguntei confusa, era muita informação para apenas quinze minutos.
—Não tenho certeza...mas acho que não queira ser neta de uma pessoa dessas. -Suspirou fundo deixando claro sua tristeza ao falar em Amélie. —Se for procurá-la certifique que você vai ter coragem de aguentar essa mulher. Tenho certeza que irá fazer de sua vida um inferno, e aquele inferno que arde até quando se respira, tenha cuidado, muito cuidado, acho que não merece desperdiçar sua liberdade por apenas curiosidade de saber de onde veio, tem coisas que é melhor deixar no passado que é onde elas pertencem. Percebi a maneira que falava, ela teria feito muitas coisas horríveis para essa senhora, estava com medo de me tornar parecida. Iria em busca de Amélie, gostaria de tirar essa história a limpo.
—Preciso encontrar essa mulher, a senhora me ajuda? Eu necessito muito ouvir isso da boca dela. Também gostaria de saber se tenho vínculo familiar com ela, isso significaria muito para mim.
—Posso dizer onde mora, mas isso todos de Helenth sabem onde ela vive. -Fez uma pequena pausa antes de olhar fundo em meus olhos.
—Ela é a pessoa mais rica dessa cidade, tem muitas plantações e muitas terras, dizem que tem até no exterior, a maior plantação de couve é dela, tudo o que ingerimos infelizmente é dessa fazenda, todas as frutarias e mercados dependem dela. Tem poder sobre nós, caso algo de errado com seu plantio nós que iremos sofrer.
—E onde...onde ela vive? —Subindo no seu quarto é possível ver um enorme casarão antigo, lá que ela vive...sozinha, na escuridão...depois do ocorrido jamais voltei vê-la novamente.
—Só andando que posso chegar até lá? -Indaguei um pouco preocupada.
—E se eu conseguir ir lá, será que ela me atenderia?
—Richard pode levar você, mas está chovendo, seria um pouco difícil passar em toda aquela lama com uma carroça caindo os pedaços e não sei se valeria a pena fazer isso, talvez nem esteja lá ou não saia para falar com você. -Me disse pegando sua xícara e levando-a até sua pia.
—Obrigada mesmo...-Fiz uma pequena pausa e logo notei que acabo de descobrir o nome da criatura mais egocêntrica que conheci em toda minha vida. —Richard.
Levantei-me indo em direção da porta, havia um pequeno guarda-chuva preto, abri e andei até a esquina, fiquei esperando Richard passar pela rua, o tempo simplesmente não passava, estava ansiosa e nervosa para tentar falar com Amélie, seria estranho chegar contando quem sou eu.
Decidi dizer que eu estava apenas a procura de um emprego, era uma boa ideia para se aproximar dessa mulher.
Avistei Richard chegando e corri até ele antes que mais pessoas chegassem pedindo carona.—Oi. -Esperei a resposta sem sucesso.
—Preciso que me leve até aquele casarão antigo da senhora rica, sabe?
—Se quiser ficar no meio da estrada com lama até na alma vá em frente. -Retrucou com uma cara de quem está prestes a cometer um crime.
—Por favor, ou então me diga alguém que possa me levar. -Abaixei a cabeça com uma cara triste.
—É um assunto sério.
—Você nem chega direito aqui e já tem assunto sério com gente importante? Bem, espere a chuva passar, eu te levo, mas não se acostume, meu trajeto é apenas entre duas cidades, não costumo ir para o inferno e você também deveria tirar essa ideia de querer ir para aquela prisão de vidas. -Dizia com um tom raivoso, como se estivesse se lembrando de algo ruim que essa senhora deve ter feito.
—Obrigada, Richard.
—Como sabe meu nome? -Perguntou arqueando as sobrancelhas com o tom de voz um pouco assustado. —Andou perguntando sobre mim?
—Não seja tão convencido, a senhora dona da pensão que me disse para esperar o Richard vir com a carroça e pelo meu conhecimento apenas você que tem uma carroça, não foi muito difícil tirar essa conclusão. -Respondi seca assim como ele fazia sempre comigo, prometi que iria tentar acalmar minha raiva, mas ás vezes as pessoas não colaboram.
—Gostei, não foi tão gentil agora. É assim que as coisas funcionam nessa cidade. –Sorriu com um ar irônico cerrando os olhos. —É melhor entrarmos no café, não estou disposto a pegar uma pneumonia.
Entrei junto com Richard, pelo menos por alguns segundos consigo concordar com algo que sai de sua boca.
Sentei-me na cadeira ao lado da janela, conseguia observar o céu quase se abrindo, com sorte logo essa chuva forte daria uma trégua.
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20 anos.
Romansa20 anos, parece muito tempo, tempo que pode acontecer muita coisa, mudar tudo ou talvez pode apenas passar de uma maneira que nem se damos conta. Assim foi com Elise, após se passarem 20 anos ela desperta o desejo de conhecer sua origem, diante diss...