Ainda bem que as paredes não deixavam passar o som, porque, se assim fosse, muita gente saberia as histórias contadas por gente cuja sanidade mental se encontrava comprometida. Marina convivia com essa tal gente.
- Ana, o que falamos aqui, nestas 4 paredes, fica aqui.
- Já não confio em ninguém. Vai dizer á policia, que eu já sei. Vocês policias... são todos iguais!
- Eu não sou policia, Ana. Eu sou psicóloga e não estou aqui para a julgar, isso é o tribunal. Eu estou aqui para a ajudar. - proferiu Marina, calmamente.
- Sabe como me podia ajudar? Matando-me. Receite-me um veneno qualquer. Tanto faz. Já não sei de nada.
Apesar de Marina se manter pacífica, nem toda a gente tinha a sua calma.
- Tire-me daqui! Tire-me daqui! - gritava Ana, abanando o seu braço violentamente.
Marina ergueu-se.
- Realmente, assim não podemos continuar, Ana. - elevou a voz. - Eu não a vou colocar na prisão, nem vou retirar a sua denúcia. Não posso, nem consigo, provar que a senhora está inocente, a menos que...
Ana respirava acelaradamente.
- A menos que o quê, doutora?
- A menos que se sente, calmamente, e tenha, como todas as pessoas normais sabem ter, uma conversa civilizada e sem agressividade. Acha que consegue? - perguntou.
Ana sentou-se, respirou fundo. Esta paciente bipolar, encontarava-se em prisão preventiva por suspeita de homicídio ao próprio marido. O caso foi julgado, e Ana sofreria uma pena de 7 anos de prisão. Porém, após ter sido diagonosticada a sua doença, Ana saiu da prisão, e foi internada num hospital psiquiátrico, onde estaria agora a ser devidamente tratada.
- Quer saber o quê, você? - perguntou Ana, de um modo extremamente agorrante.
- Quero que me conte, a Ana, não a polícia, o porquê de ter morto o seu marido. Eu vou aceitar, e repito, não a julgarei. Pode confiar em mim.
- Merda, que eu já lhe disse, ó doutora. Eu não matei ninguém!
Ana voltava a ficar impaciente.
- No entanto, foi julgada por homicídio. A polícia, segundo sei, conseguiu provas suficientes para provar que a Ana cometeu este crime.
- E diz a senhora que não é policia...
Marina sorriu ligeiramente.
- Permita-me que deixe claro que o que eu quero é compreender o que fez, e porque o fez. Não a vou censurar pelo que fez. Essa não é a minha função.
Ana desatou a chorar, repentinamente.
- Eu não o matei, eu não o matei. Se matei, foi sem querer, doutora!
Marina observava o seu comportamento e o que dizia, atentamente.
- Matou-o sem querer, portanto? - perguntou.
- Sim, não. Eu não o matei, não matei. - repetia Ana, tremendo as mãos, e chorando intensamente.
- Ana, gostava do seu marido? - perguntou Marina.
A paciente olhou para ela, espantada com a sua pergunta.
- Claro! Muito... - gritou de forma convincente.
Marina sorriu.
- Conte-me uma memória sua com ele.
Ana fez uma pausa, o que significava que estava a pensar. Depois, uma lágrima escorregou-lhe pela face.
- Eu tinha-o convidado para irmos ao teatro. Ele tinha aceitado. Foi-me buscar ás 16 horas... não, ás 17 horas, ou seriam 17:30 ?
- Continue, Ana...
- Depois, quando chegámos, ele deu-me a mão, pela primeira vez, e fomos assim até dentro do teatro. A peça foi muito divertida.
- E lembra-se de quem é que lá estava? - perguntava Marina, de modo a "escavar" mais informação.
Rapidamente, a face alegre de Ana refletiu raiva e mágoa.
- A Bianca.
- Vejo que não recorda a Bianca com muita satisfação.
Ela começou a abanar o pé, cada vez mais rápido, sinal de que se encontrava nervosa.
- Foi com ela que o meu marido me traíu.
Marina ficou surpreendida.
- Quando é que isso aconteceu? - perguntou curiosa.
- Há uns 6 meses...
Marina olhou Ana nos olhos.
- Tem isso a ver com a morte do seu marido?
Ana voltou a tremer, e a ficar vermelha.
- Não me estou a sentir muito bem, doutora. Podemos continuar esta conversa mais tarde?
Marina levantou-se.
- Sim, mas responda-me só á pergunta que lhe coloquei.
Ana também se levantou.
- Não, doutora, não tem nada a ver.
Por fim, Marina estendeu a mão, para se despedir de Ana, e esta retribuíu o gesto.
- O que me contou, agora eu não conto a ninguém. Sou uma espécie de amiga, agora. Pode ser? - perguntou Marina, a sorrir.
Ana acenou afirmativamente com a cabeça e saíu do gabinete, ainda um pouco nervosa.Enquanto profissional, Marina levava o seu trabalho muito a sério. E ela dedicava-se mesmo aos seus pacientes. No entanto, ela não levava para casa os problemas dos outros. Afinal, seriam demais, se se adicionassem também os seus próprios problemas.
- Estou bem, mãe. E tu? - falava ao telefone com a sua mãe.
- Também estou. Como andam a correr as coisas, lá na clínica? - perguntava a mãe, do outro lado da linha.
- Bem, acho. Pelo menos, tenho trabalho. Muita gente que andou comigo na faculdade ainda não conseguiu trabalho. Para segundo ano de trabalho, acho que estou muito bem colocada.
Ainda só tinha 24 anos, mas falava como se tivésse 35 de experiência. Marina possuía uma maturidade impressionante, que foi adquirindo ao longo dos tempos, desde que, aos 18 anos, saiu de casa, para estudar na faculdade. Na cidade onde estudou permaneceu, até hoje. Era a psicóloga mais nova daquela clínica, e já nem era tratada como uma estagiária qualquer. As pessoas tinham-lhe respeito. Não só porque até agora o seu trabalho tinha sido impecável, mas também pela sua postura e atitude destemida. E claro, era dotada do dom da comunicação, liderança, e o mais impressionante: persuasão.
Uma rapariga assim não deveria ter, claramente, falta de amigos, ou companheiros. E não tinha. Luís era o seu leal companheiro amoroso, ou namorado, se assim preferirem.
Era um ex-militar, de 26 anos, que tinha sido lesionado no braço, após ter levado com um tiro, em combate.
Nenhuma parte do seu corpo tinha sido amputada, ou se encontrava disformada. A única incapacidade, e a razão pela qual foi enviado para casa, era o facto da sua força do braço esquerdo ter ficado reduzida, incapacitando-o de suportar objetos muito pesados.
Marina amava a sua personalidade, principalmente, porque era a pessoa mais corajosa que ela, que alguma vez conhecera.
Viviam como um casal, partilhando o mesmo apartamento, a mesma cama, o mesmo jantar. No entanto, ainda não partilhavam as alianças de casamento.
Talvez um dia se casassem, e construíssem familia, mas isso não estava nas prioridades de Marina. Naquele momento, o trabalho estava em primeiro lugar.