Querida Tia Lu

37 1 0
                                    

Avistei ao longe o senhor que me indicaram. Era um velho com uma aparência terrível, suas roupas pareciam estar sujas, o cabelo emaranhado e cinzento chegava até os ombros e a barba se equiparava em tamanho. Bizarro. Seus olhos já estavam despidos de vida e emoção e observavam a movimentação das pessoas, enquanto estava comendo algum tipo de semente sentado numa cadeira ao lado de uma pequena armação de madeira, como um armário. Me aproximei de sua barraca construída com finas madeiras amareladas, o teto era uma lona azul. Penduradas por pregos, amarradas em barbantes e estocadas em potes de barro ou latas estavam todo tipo de especiarias que se podia encontrar numa feira como aquela. Observei um pouco o interior da loja improvisada, um pouco curioso pelo que via ali, antes de me adiantar em fazer o pedido.

– Bom dia, senhor. Hum... teria algo bom contra ratos?

Ele nada disse, sequer olhou para mim. Levantou, se debruçou sobre suas mercadorias e de trás de todas aquelas coisas tirou um frasco com um pozinho, de cor escura mas não preta, e o segurou na altura de meus olhos, me mostrando o preço escrito a mão num pedaço de papel de caderno. Pedi mais três frascos, tirei o dinheiro do bolso, paguei e fui para casa.

Tia Lu abriu a porta e me recebeu como sempre com um sorriso de orelha à orelha como sempre, com os braços aberto, demonstrando o afeto que sempre dizia ela ser o mesmo de uma mãe, talvez ela tentasse suprir a falta que eu poderia ter sentido de mãe biológica, a qual nunca tive e que morrera antes mesmo de eu nascer, me impedindo que eu realmente tivesse um sentimento por ela ou vontade de tê-la conhecido. Abracei Tia Lu e logo me soltei daquele gesto de afeto. Estava irritado com ela ainda. "O almoço já esta pronto", ela disse encaminhando-se para a cozinha.

À partir daquele dia passei a dosar diariamente, e claro, secretamente, os alimentos que Titia ingeria com pequenas doses da substancia (para não causar suspeitas, caso fosse feita uma autopsia), principalmente seu café, que pelo sabor forte e sua cor poderia ser camuflado os possíveis traços do novo ingrediente. E ela sempre bebia seu café pela manhã, o mais cedo que ela pudesse toma-lo. Nunca entendi essa mania irritante. Seus chinelos rasteiros pela casa me acordavam muitas vezes antes mesmo que o Sol tivesse surgido por completo no horizonte.

Nos dois dias seguintes passei a escuta-la reclamando constantemente de dores estomacais e tonturas incessantes, além de fraqueza. E mesmo assim ela não mudava seu jeito. Todo aquele amor me deixava doente, irritado, nauseado. Será que ela não via que me sufocava? Toda manhã ela ainda acordava, arrastava seu chinelo e tomava seu café miserável, e duas horas depois ela entrava no meu quarto me beijava e desejava bom dia. Todos os dias!

Já se passavam duas semanas e os sintomas eram sempre os mesmos, constantes, sem alterações para pior nem para melhor, no meu e no ponto de vista dela. Resolvi aumentar a dose naquele dia. Restava apenas um frasquinho do veneno só conseguiria outro de novo um ano depois, quando a feira retornasse, e nem havia garantia de que o velho viria outra vez. Pus metade. E no dia seguinte nem a ouvi se arrastando pela casa. Só acordei quando ela entrou no quarto e me chamou. Santo Deus! Ela estava decrépita. Cheguei a me assustar quando ela se aproximou e beijou meu rosto dizendo bom dia. Estava pálida, magra, os olhos fundos e escuros e seus movimentos estavam débeis e inseguros. Ela ficara assim duas horas depois de ter tomado a dose maior do veneno ou se definhara através dessas duas semanas? Eu não lembrava. Ela se virou para sair mas acabou se estatelando no chão. Eu instintivamente me livrei de meu cobertor e pulei da cama numa velocidade recorde de alguém que acabara de acordar. Segurei-a pelos braços e coloquei sentada sobre a cadeira em meu quarto. Ela tremia gélida. E nas minhas mãos sua carne parecia tão frágil quanto um fino cristal. Soltei seus membros e me apoiei com as mãos nos braços da cadeira, ficando um pouco inclinado sobre a Pobre Senhora. Observando suas reações à química ingerida. Finalmente o efeito que esperava do pó. Não pude me conter e sorri para ela, olhando em seus olhos. Não era bem felicidade, mas eu sentia ansiedade, nervosismo e satisfação, de alguma forma. Ela tentava falar e sua língua não mais ajudava, fazendo as palavras saírem arrastadas de seus pulmões. "Um médico... Filho, um médico...", pude entender. Estava entalado em meu peito mas, ainda sorrindo, consegui dizer – Não! – ela me olhou sem entender nada e sua tremedeira piorou, dificultando até mesmo que ela conseguisse manter os olhos fixos nos meus. Como ela não dizia mais nada eu falei – Fui eu! Fui eu! – Seus olhos se reviraram e ela se debruçou sobre seus joelhos, vomitando todo o chão a sua frente, inclusive meus pés. Um liquido consistente e de uma tonalidade entre o vermelho e o preto, que exalava por todo o quarto um odor fétido e estonteante. Quase vomitei também. Eu estava sem reação. Não sabia mais o fazer à partir dali. Só podia ficar observando e sentindo os pulsos em meu peito acelerarem sua frequência, mal respirava ou pensava. Quando ela subiu seus olhos estavam cheios de lágrimas e ela chorava compulsivamente, gritando entre os soluços "Não quero mais café! Por favor, não quero mais café!". Ela estava delirando. E mesmo em seu estado desgraçado em todos os sentidos ( o liquido escuro escorrendo pelo canto da boca, os olhos fundos e esbugalhados num rosto agora deformado pela dor e angústia e os movimentos frenéticos de seus braços) ela pareceu naquele momento apenas como uma criança assustada. Senti a facada na alma. E essa pelo menos estava doendo mais a mim do que a ela. Senti o peso das lágrimas escorrendo pelo meu rosto e caindo no colo de Minha Tia. Nem posso descrever a dor lacerante que senti no peito, mas foi o suficiente para que minha respiração cessasse pelos momentos seguintes, os que ela aos pouco parava de se debater e gritar, ate ficar completamente imóvel.

Tia Lu sempre odiou café, mas o tomava pela força do habito. Eu a amava e nem sei porque a matei.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Jun 08, 2016 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Sobre o que eu sei do Amor (contos)Onde histórias criam vida. Descubra agora