Três

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Quatro horas se passam desde que demos início ao processo seletivo. Das vinte e duas pessoas que entrevistamos, conseguimos selecionar cinco para o treinamento. Hugo é ainda mais exigente do que eu, mas isso não é um de seus defeitos. Precisamos de dezoito funcionários para a nova franquia, entre operadores de caixa, vendedores, estoquista e gerente. Então pedimos mais cafés, pães de queijo e água, porque teremos longas horas de seleção curricular pela frente.

– Se eu não peço por comida, você não se abastece, não é? – comenta, quando volta à mesa. Eu mal escuto, porque estou concentrada em um currículo. – Ei, terra chamando a florzinha!

– O quê? – viro-me para encará-lo. – Para com essa coisa de me chamar de flor!

– Tenho que concordar que não combina. Você é muito arisca! – eu o encaro, pasma. Arisca, eu? – Mas é uma analogia tão irresistível! Você deveria entender.

Levanto uma sobrancelha e solto um suspiro, enquanto pego um pão de queijo da bandeja que ele ainda segura.

– Cale a boca. – Dou uma mordida e minha barriga emite um som inconvenientemente alto. Agora é Hugo quem ergue uma de suas sobrancelhas de taturana para mim. – Olha – adianto-me em dizer, ainda de boca cheia. – Acho injusto esse negócio de ter que se alimentar. Não tenho tempo para ficar me reabastecendo.

– Você é um caso a ser estudado. Comer é um dos maiores prazeres dessa vida – ele solta, inclinando a cabeça para espiar o meu trabalho. – Encontrou alguma coisa?

– Separei alguns currículos, mas poucos me encheram os olhos.

– Eu fiz uma publicação. Olha aqui. – Ele sinaliza para que eu me aproxime da tela do seu laptop e eu arrasto um pouco a cadeira em sua direção. – Lancei as vagas nessa página, pedindo que enviassem um currículo com foto no corpo do e-mail.

– Você sabe que, oficialmente, não pode contratar ninguém pela aparência, não é?

Ele sorri, debochado.

– Não seja hipócrita. Você não contrataria nenhum carrancudo para sua equipe de vendas.

– Não estou dizendo isso. Só acho que não dá para ter certeza através de fotos – rebato. – Vai abrir o e-mail ou não?

Ele não me responde, em vez disso, abre a página que criou para receber os e-mails referentes às nossas vagas. Nos deparamos com oitocentas e trinta e quatro mensagens. Solto um assobio.

– Uau! Isso vai demorar.

– Vamos de baixo para cima. Os primeiros envios receberão prioridade – concordo, ciente de que mesmo que estivéssemos felizes pela companhia um do outro, não daríamos conta de ler aquilo tudo.

Hugo arrasta o cursor até o primeiro e-mail que recebemos e clica sobre ele. À nossa frente nada se materializa. A página está em branco. Tudo o que aparece é a imagem de um clipe de papel.

– Anexo? – resmunga – Ótimo. A pessoa sequer leu o anúncio.

Passamos para o próximo. Não temos tempo para abrir anexos. A coisa se repete. Hugo corre o dedo para a mensagem seguinte, repetidamente, e em todas elas os currículos estão anexados.

– Não é possível! Que perda de tempo!

– Hugo – apoio minha mão sobre a sua, para fazê-lo parar. Ele me encara, surpreso. Seus olhos se desviam distraidamente para nossas mãos, me fazendo soltá-lo depressa. – Vamos voltar um passo. Por que não abrimos seu anúncio para ver se algo não está... – procuro a palavra certa, pisando em ovos. – "Ambíguo"?

Minha Vida às Avessas (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora