Um

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Por volta das seis e meia da manhã, o sol ainda está tão baixo que seus raios invadem a janela do escritório de forma quase horizontal. A irritação que sua incidência causa nos meus olhos acaba me fazendo pensar se não sofro de fotofobia.

Minha chefe está falando há quinze minutos, mas eu absorvo muito pouco. Tudo em que consigo me concentrar é na luz alaranjada dos raios na parede e na leve dor de cabeça que ela tem me causado.

A boca de Lavínia se move, articulando com perfeita dicção. Se eu estivesse concentrada, mesmo a uma longa distância, seria capaz de compreender as palavras que ela diz. Mas não é o caso.

Minha mente está convencida a negar a autenticidade dessa reunião, simplesmente porque é inacreditável que estejamos mesmo lado a lado nesta sala, Hugo e eu, sob os pedidos de Lavínia para contratarmos, juntos, os funcionários da nova franquia que o grupo Veras − no qual trabalhamos − abrirá na cidade.

– Vocês precisam superar isso! Não são mais vendedores. Hugo já subiu de cargo duas vezes, em dois anos e você, Violeta, três!

Eu decido engolir em seco para evitar desencadear um eterno embate com meu ex-atual-colega, com quem nunca me entendi.

– Lav, eu entendo sua posição, mas não vejo como isso pode dar certo – é ele quem responde, educado, cínico, como sempre fora na frente dela. – Nós não nos entendemos. Não conseguiríamos chegar a um denominador comum.

Mesmo que seja Hugo quem se pronuncia, para minha irritação, é a mim que Lavínia fuzila, antes de esclarecer que não há discussão sobre o caso e dá-lo como encerrado. Vamos mesmo trabalhar juntos, até que se defina um gerente para a nova loja. Minha supervisora pede que ele se retire para conversarmos a sós. Hugo passa o polegar sobre a notável cicatriz que tem no filtro labial – aquele espaço que há entre a boca e o nariz – e abre um sorriso irônico, obviamente sem que ela veja, deixando-me com a certeza de que acha que serei chamada a atenção. Semicerro meus olhos, querendo socá-lo, mas conhecendo Lavínia como conheço, sei que este não é o caso.

– Você não está fazendo isso comigo – não consigo esconder a mágoa em minhas palavras assim que ele sai pela porta. Aliás, não consigo esconder a mágoa sequer, por ela não ter tomado minhas dores na época do nosso problema. Somos amigas fora daqui, e por mais que ela seja minha chefe, sempre achei que merecia algum crédito por nossa amizade e pelos anos em que trabalhamos juntas antes de Hugo existir nessa empresa. Nem que esse crédito se limitasse a alguma confiabilidade. Mas não. Eu senti seu olhar de dúvida quando Hugo contou aquelas mentiras horríveis sobre mim, em sua tentativa vil de evitar minha promoção.

– Não seja tão teimosa, Violeta. Eu preciso dos meus melhores contratadores nessa missão. E advinha quem são meus gerentes que têm as melhores equipes?

Levo as mãos às têmporas, que estão começando a latejar.

– Não acredito que ele seja assim tão bom.

– Para, Violeta! Isso é pura implicância. Você sabe que é. – Eu realmente sei. Hugo é muito bom. Profissional literalmente ao extremo. Isso era o que mais o incomodava quando éramos vendedores. Ele não admitia ficar atrás de mim.

– Certo, Lav – aceito, soltando um suspiro que entrega minha contrariedade. – Mas se ele aprontar alguma coisa, qualquer coisa comigo, eu caio fora.

Deixo o escritório e sigo direto para o shopping onde fica minha loja. Como não dirijo, tenho que agradecer pela vantagem da franquia que eu gerencio ser a mais próxima do lugar onde nossas reuniões acontecem. Atravesso a avenida, parando para aguardar o fechamento de dois ou três sinais e caminho por alguns metros até chegar ao meu destino. Antes de subir até o meu piso, porém, paro na metade do caminho e entro na livraria de sempre, para tomar um café. Cafeína sempre é o melhor remédio para minhas dores de cabeça. Faço meu pedido para a atendente que já me conhece e não preciso solicitar que ela me dê o desconto de funcionário.

Minha Vida às Avessas (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora