As manhãs eram cinzentas – literal e figurativamente. Assim que o despertador tocava, Flora dava por si em modo automático, erguendo-se com esforço e entrando na característica personagem que não lhe devia pertencer: a de mãe e pai, em simultâneo. Mesmo que o seu talento natural para manter tudo na ordem lhe facilitasse a vida, por dentro ela permanecia melancólica ao mirar, incapaz, a adolescência que lhe passava diante dos olhos.
"Levanta-te, Eva! Estás atrasada." Berrou Flora, à irmã, que, minutos mais tarde, respondeu ao abandonar o quarto, suportando uma postura irritada e irritante.
Os quinze anos são uma das fases mais difíceis na vida de alguém. Os quinze anos são aquela altura em que nada faz sentido, em que a vida nos desilude e as pessoas nos desapontam. E a época de Eva enfrentar e sobreviver a esse período tinha chegado.
Flora não se achava no direito de julgar a irmã por sentir, principalmente dadas as circunstâncias. Por isso, por muito que, às vezes, as atitudes dela a enervassem e até ferissem, a rapariga não dizia nada, limitando-se a escutar, ignorar e seguir em frente.
"Tens o pequeno-almoço em cima da mesa. Vou trabalhar." Informou Flora, entreabrindo a porta da casa de banho, para que a irmã a pudesse ouvir.
Revelando-se uma adepta fiel do silêncio, Eva não lhe respondeu, pelo que Flora entendeu que poderia sair.
Atravessou a cidade, a pé, num instante, e apresentou-se no local de trabalho. Vestiu a farda e colocou-se atrás do balcão, ofegante e estafada, passando o encarar pelos poucos clientes que ocupavam as mesas.
As olheiras, que pareciam já fazer parte das suas feições, estavam num dia especialmente mau, fazendo-se notar até aos mais distraídos, não passando das melhores imagens – mas não era como se ela se importasse com isso.
"Bom dia, Flora." Cumprimentou Alex, o seu colega de trabalho (e filho do patrão), suportando no rosto um sorriso radiante, quase como se aquele fosse o dia mais feliz da sua vida insignificante. "Como te sentes, nesta bela manhã de Outono?"
Num relance despreocupado, mas longe de rude, Flora estabeleceu um curto contacto visual com o rapaz. "Bem, Alex. Obrigada por perguntares." Sorriu, vagamente. "Como estás tu?"
A boca dele soabriu-se para lhe retorquir, mas, num movimento ágil e despercebido, Angus tornou-se dono do protagonismo, cumprindo a promessa feita na manhã anterior.
Suportando o mesmo ar boémio, declarou: "Estou bem."
De forma veloz, Flora rodou a cabeça para encontrar o portador da voz que, tragicamente, se tornara familiar, apressando-se a revirar-lhe os olhos, quase como se entre eles se tivesse estabelecido uma confiança desprovista.
"O que fazes aqui?" Indagou ela, encobrindo as mãos no avental preto, que se alongava desde a sua cintura até aos joelhos.
"Disse que voltava." Relembrou, sorrindo, inclinando-se sobre o balcão. "Quero um café."
Desaprovando-o em pensamentos, Flora apressou-se a atender-lhe o pedido, iniciando uma batalha interna assim que colocou a chávena na máquina, completamente inocente à veracidade de que o desfeche da dita batalha poder-lhe-ia vir a custar a sanidade.
"Flora." Balbuciou, num tom rígido, mas quase inaudível.
"Desculpa?" Angus franziu as sobrancelhas, profundamente baralhado.
"O meu nome é Flora." Repetiu, roubando-lhe uma olhadela, por cima do ombro. "E o teu qual é?"
Com um sorriso torto, muito singular e, para aqueles que o entendiam, um tanto apavorante, o rapaz antecipou-se a retorquir-lhe. "Angus."
A rapariga de cabelos negros e olhos claros assentiu uma única vez, colocando-lhe uma caneca de café fumegante na frente, e afastando-se do balcão com dois passos compridos. Observaram-se mutuamente durante um momento, pouco tempo antes de Flora agarrar no telemóvel e viajar para fora dali, ignorando-o na integralidade.
"Hoje, há uma festa, num bar aqui perto." Anunciou Angus, do nada, arrastando a moça de volta à terra. Confusa, Flora soergueu-lhe uma sobrancelha, interrogativamente. "Vou lá estar. Se quiseres, aparece." Convidou, antes de voltar a largar o dinheiro no balcão e sair porta fora, com um jeito simpático plantado na face.
Flora quase deixou escapar um sorriso – quase. Mas não foi capaz de consentir a si mesma o luxo de se apegar a alguém. Porque uma das muitas lições que também ela aprendeu nos seus quinze anos, foi que as pessoas são peritas em desapontar.
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Thunderstorm
Teen FictionUma tempestade com trovões e relâmpagos, tipicamente acompanhada de chuva pesada ou um dilúvio.