III

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Recolhendo-me no dia seguinte, achei em casa uma carta. 

Antes de abri-la conheci que era dela, porque lhe tinha imprimido esse suave perfume que a cercava como uma auréola. 

Eis o que dizia : 

"Julga mal de mim, meu amigo; nenhuma mulher pode escarnecer de um nobre coração como o seu.

 "Se me oculto, se fujo, é porque há uma fatalidade que a isto me obriga. E só Deus sabe quanto me custa este sacrifício, porque o amo! 

"Mas não devo ser egoísta e trocar sua felicidade por um amor desgraçado. 

"Esqueça-me. 

"C"

Reli não sei quantas vezes esta carta, e, apesar da delicadeza de sentimento que parecia ter ditado suas palavras, o que para mim se tornava bem claro é que ela continuava a fugir-me. 

 Essa assinatura era a mesma letra que marcava o seu lenço, e à qual eu desde a véspera pedia debalde um nome! 

Fosse qual fosse esse motivo que ela chamava uma fatalidade, e que eu supunha ser apenas escrúpulo, senão uma zombaria, o melhor era aceitar o seu conselho e fazer por esquecê-la. 

Refleti então friamente sobre a extravagância da minha paixão, e assentei que com efeito precisava tomar uma resolução decidida.

Não era possível que continuasse a correr atrás de um fantasma que se esvaecia quando ia tocá-lo.

Aos grandes males os grandes remédios, como diz Hipócrates. Resolvi fazer uma viagem.. 

Mandei selar o meu cavalo, meti alguma roupa em um saco de viagem, embrulhei-me no meu capote e saí, sem me importar com a manhã de chuva que fazia.

Não sabia para onde iria. O meu cavalo levou-me para o Engenho Velho, e eu daí me encaminhei-me para a Tijuca, onde cheguei ao meio-dia todo molhado e fatigado pelos maus caminhos.

Se algum dia se apaixonar, minha prima, aconselho-lhe as viagens como um remédio soberano e talvez o único eficaz.

Deram-me um excelente almoço no hotel; fumei um charuto, e dormi doze horas, sem ter um sonho, sem mudar de lugar.

Quando acordei, o dia despontava sobre as montanhas da Tijuca.

Uma bela manhã, fresca e rociada das gotas de orvalho, desdobrava o seu manto de azul por entre a cerração, que se desvanecia aos raios do sol.

O aspecto desta natureza quase virgem, esse céu brilhante, essa luz esplêndida caindo em cascatas de ouro sobre as encostas dos rochedos, serenou-me completamente o espírito.

Fiquei alegre, o que há muito tempo não me sucedia.

O meu hóspede, um inglês franco e cavalheiro, convidou-me para acompanhá-lo à caça;gastamos todo o dia a correr atrás de duas ou três marrecas e a bater as margens da Restinga.

Assim passei nove dias na Tijuca, vivendo uma vida estúpida quanto pode ser:dormindo, caçando e jogando bilhar.

Na tarde do décimo dia, quando já me supunha perfeitamente curado e estava contemplando o sol, que se escondia por detrás dos montes, e a lua, que derramava no espaço a sua luz doce e acetinada, fiquei triste de repente.

Não sei que caminho tomaram as minhas idéias; o caso é que daí a pouco descia a serrano meu cavalo, lamentando esses nove dias, que talvez me tivessem feito perder para sempre a minha desconhecida.

Acusava-me de infidelidade, de traição; a minha fatuidade dizia-me que eu devia ao menos ter-lhe dado o prazer de ver-me.

Que importava que ela me ordenasse que a esquecesse? Não me tinha confessado que me amava, e não devia eu resistir e vencer essa fatalidade, contra a qual ela, fraca mulher, não podia lutar?

Tinha vergonha de mim mesmo; achava-me egoísta, cobarde, irrefletido, e revoltava-me contra tudo, contra o meu cavalo que me levara à Tijuca, e o meu hóspede, cuja amabilidade ali me havia demorado.

Com esta disposição de espírito cheguei à cidade, mudei de traje, e ia sair, quando o meu moleque me deu uma carta.

Era dela.

Causou-me uma surpresa misturada de alegria e de remorso: 

"Meu amigo. 

"Sinto-me com coragem de sacrificar o meu amor à sua felicidade; mas ao menos deixe-me o consolo de amá-lo.

"Há dois dias que espero debalde vê-lo passar, e acompanhá-lo de longe com um olhar!

Não me queixo; não sabe nem deve saber em que ponto de seu caminho o som de seus passos faz palpitar um coração amigo.

"Parto hoje para Petrópolis, donde voltarei breve; não lhe peço que me acompanhe,porque devo ser-lhe sempre uma desconhecida, uma sombra escura que passou um dia pelos sonhos dourados de sua vida.

"Entretanto eu desejava vê-lo ainda uma vez, apertar a sua mão e dizer-lhe adeus para sempre. 

"C."

A carta tinha a data de 3; nós estávamos a 10; havia oito dias que ela partira para Petrópolis e que me esperava.

No dia seguinte embarquei na Prainha e fiz essa viagem da baía, tão pitoresca, tão agradável, e ainda tão pouco apreciada.

Mas então a majestade dessas montanhas de granito, a poesia desse vasto seio de mar,sempre alisado como um espelho, os grupos de ilhotas graciosas que bordam a baía, nada disto me preocupava.

Só tinha uma idéia... chegar; e o vapor caminhava menos rápido do que meu pensamento.

Durante a viagem pensava nessa circunstância que a sua carta me revelara, e fazia-me por lembrar de todas as ruas por onde costumava passar, para ver se adivinhava aquela onde ela morava, e donde todos os dias me via sem que eu suspeitasse.

Para um homem como eu, que andava todo o dia desde a manhã até a noite, a ponto de merecer que a senhora, minha prima, me apelidasse de Judeu Errante, este trabalho era improfícuo.

Quando cheguei a Petrópolis, eram cinco horas da tarde; estava quase noite.

Entrei nesse hotel suíço, ao qual nunca mais voltei, e enquanto me serviam um magro jantar, que era o meu almoço, tomei informações.

Têm subido estes dias muitas famílias? perguntei eu ao criado.

Não, senhor.

Mas há coisa de oito dias não vieram da cidade duas senhoras?

Não estou certo.

Pois indague, que preciso saber e já ; isto... o ajudará a obter informações.

A fisionomia sisuda do criado expandiu-se ao tinir da moeda, e a língua adquiriu a sua elasticidade natural.

Talvez o senhor queira falar de uma senhora já idosa que veio acompanhada de sua filha?

— É isso mesmo.

A moça parece-me doente; nunca a vejo sair.

Onde está morando?

Aqui perto, na rua de...

Não conheço as ruas de Petrópolis; o melhor é acompanhar-me e vir mostrar-me acasa. 

— Sim, senhor.

O criado seguiu-me, e tomamos por uma das ruas agrestes da cidade alemã.   

Cinco Minutos - José de AlencarOnde histórias criam vida. Descubra agora