Vamos começar nossa discussão dos vários gêneros bíblicos com as epístolas do Novo Testamento. Uma das razões para come çarmos a partir das epístolas é que parecem ser de fácil interpretação. Afinal de contas, quem precisa de ajuda especial para
compreender que "todos pecaram" (Rm 3.23), que "o salário do pecado é a morte" (Rm 6.23), e que "pela graça sois salvos, por meio da
fé" (E f 2.8), ou para entender os imperativos "andai pelo Espírito"
(G1 5.16) e "andai em amor" (E f 5.2)?
Por outro lado, a "facilidade" de interpretar epístolas pode ser
bem ilusória. E isso ocorre especialmente no nível da hermenêutica.
Por exemplo, podemos tentar liderar um grupo de estudos em
ICoríntios, e veremos quantas dificuldades há na epístola. "Como a
opinião de Paulo em ICoríntios 7.25 deve ser reconhecida como
Palavra de Deus?" algumas pessoas perguntarão — especialmente
porque algumas das implicações contidas em sua opinião provocam
certo desconforto pessoal. E as perguntas continuam. Como a
excomunhão do irmão no capítulo 5 pode ter alguma relação com a
igreja contemporânea, uma vez que qualquer pessoa pode simplesmente atravessar a rua e já estará em outra igreja? Qual é a razão de
ser dos capítulos 12— 14 para quem está numa igreja local em que
os dons do Espírito mencionados nessas passagens não são aceitos
como válidos para o século xxi? Como podemos evitar a implicação
existente em 11.2-16 de que as mulheres devem ter a cabeça coberta
quando oram ou profetizam — ou a clara implicação de que devem
orar e profetizar na reunião da comunidade para a adoração?
Tudo isso deixa claro que as epístolas não são tão fáceis de interpretar quanto parece. Dessa forma, por causa da sua importância
para a fé cristã, e porque muitas questões hermenêuticas são propostas aqui, elas servirão de modelo para questões exegéticas e
hermenêuticas que desejamos levantar neste livro.
Natureza das epístolas
Antes de tomarmos especificamente ICoríntios como modelo de
exegese das epístolas, algumas palavras gerais devem ser ditas a respeito de todo o conjunto de epístolas (que compreende todo o Novo
Testamento, com exceção dos quatro Evangelhos, Atos e Apocalipse).
A princípio, é preciso notar que as próprias epístolas não são
uma coletânea homogênea. H á muitos anos, Adolf Deissmann fez
uma distinção entre cartas e epístolas com base nas recentes descobertas de papiros. As primeiras, as "cartas de verdade", conforme as
chamava, eram não literárias, ou seja, não foram escritas nem para o
público e nem para a posteridade, mas apenas tinham como alvo a
pessoa ou as pessoas para quem elas tinham sido endereçadas. Em
contraste com a carta, a epístola era uma forma literária artística ou
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