Cinval

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Curta história da minha vida: gosto de apanhar.

Agora a parte longa e chata: ter que explicar isso. Vou ver se consigo. O dia de hoje talvez sirva para ilustrar essa merda toda.

Matei o sexto horário perto das onze e meia. Fui até a sala de artes cênicas, pulei a janela, escalei a grade e depois pulei o muro da escola. Estava na rua, em frente à igreja. Meu estômago roncava. Até aí nenhuma novidade. Estava sempre com fome. Não carregava cadernos ou mochila, ninguém na escola parecia mais se importar. Todo mundo podia jurar que aquele era o caminho certo para a reprovação. Mas adivinhe só? Sempre acabo passando de ano. Não que sinta prazer em provar o contrário. Não acho que decorar meia dúzia de informações todos os dias e realizar algumas provas, seja um grande desafio. No entanto, estaria mentindo se dissesse que minha vida escolar é um completo tédio. Pelo uma vez por ano, costumo arrebentar a cara de alguém. Poderia dizer que faço isso em legítima defesa, mas estaria sendo um péssimo mentiroso. Tudo bem, as vezes acabo salvando o rabo de algum desajustado, que passa o resto do ano tentando me agradar, mas nem tudo são flores.

Como ia dizendo, matei o sexto horário.

Você deve estar pensando, "esse filho da puta juvenil vai aprontar alguma logo, logo". Não o culpo por pensar assim. Afinal, se tem uma coisa em que sou realmente bom, é em decepcionar.

O padre Herculano não tinha uma vista muito boa, mas não era necessário ter um olho de águia, para distinguir o meu andar, que mais parecia o de um camelo atravessando o deserto. Ele suspirou. Eu sempre trazia problemas:

— Seja bem-vindo a casa do Senhor, meu filho.

— E aí padre Herculano. Tudo na paz?

— Vamos vivendo um dia após o outro não é mesmo? O que te traz aqui, meu filho?

— Bati num sujeito. – Herculano se aproximou buscando um pouco mais de claridade para ver minha cara. Não fiz muito esforço para me esconder.

— Pelas chagas de Cristo! Antes de se confessar, você precisa de um médico! Seu rosto está parecendo um cú com hemorroidas. – Tentei rir. Juro que tentei, mas sentia apenas tristeza. Herculano se afastou para pegar sua caixa de remédios feita de madeira. Não disse nada enquanto cuidava dos meus ferimentos. Apenas um grunhido entre as respirações, como um carpinteiro consertando um móvel quebrado sem as ferramentas adequadas.

— Você precisa parar com isso. Leio histórias todas as semanas, de garotos que morrem por menos coisas que você.

— Pareço estar morrendo?

— Não precisa bancar o durão. Essa merda deve doer para caralho.

Se meu estômago não estivesse roncando tão alto, acho que teria ficado um pouco mais. Raramente vem alguém na hora do almoço, e os sons da cidade chegam abafados. Deu até para pensar com mais clareza e refletir sobre a burrada que estava prestes a cometer. Por um pouco, não abro o bico e digo toda a verdade. Mas acho que o padre Herculano é inteligente o suficiente para sacar quando algo não vai bem. E burro o bastante para insistir nesse negócio de confissão. O que ele diria quando lhe dissesse que só me sinto realmente vivo quando estou sangrando, com talas enfaixando meus braços e pernas, o corpo inchado, cheio de hematomas?

Enfim, padre Herculano foi o mais próximo de um amigo que tive. Até o dia em que meu pai o acusou publicamente de abuso sexual. Essa merda me atingiu como um raio. Meu pai era um alcoólatra. Estava pouco se lixando se eu comia ou se eu dava para alguém. Mas parece que a vizinhança pensava diferente. Quando ficou claro que meu pai não podia beber em canto algum sem ser perturbado pelos boatos de que o seu filho matava aula para ir à igreja, por um pouco não procurou os jornais. De modo que esta era a última semana de Herculano na paróquia. Ele tentou me fazer prometer que iria parar de brigar. Ele sabia que seria em vão, mas precisava tentar. Talvez ele soubesse que a briga de hoje, de algum modo estivesse relacionada a tudo isso.

— Desculpe por essa merda toda. Odeio dizer isso, mas... Dê-lhes uma surra da próxima vez.

"Não posso". Foi tudo o que consegui dizer enquanto me afastava.

No dia seguinte, ao ir para escola, o Porpeta apontava o indicador na minha direção, lá do portão da escola. Mesmo da esquina, era possível reconhecer o desconforto dos outros alunos em disfarçar os risinhos gerados pelos seus comentários maldosos.

"Não posso".

 Porpeta me encarou pela primeira vez na vida. Devia acreditar que o fato de alguém ter sido aliciado, transformava automaticamente a vítima em uma pessoa covarde. Talvez estivesse certo. Procuro não pensar muito nisso, já que nada disso me aconteceu. Infelizmente ele não tinha como adivinhar.

Matilha Número 8Onde histórias criam vida. Descubra agora